sábado, 27 de março de 2010

A noite americana de Truffaut: o filme...

...dentro do filme

“La nuit américaine” (França/Itália, 1973.
Direção: François Truffaut. Duração: 115 min)


Eu devo muito ao cinema americano porque ele me formou, a partir da liberação da França no final da guerra. Nos filmes que faço há uma espécie de competição entre a influência do cinema americano e minhas raízes, que são muito francesas. Apesar disso, acho que os americanos vêem em A Noite Americana um filme bastante francês. Truffaut, em entrevista, quando premiado por melhor diretor e melhor filme do ano, pela Associação Nacional de Críticos Americanos, com A Noite Americana.

“A noite americana” é uma história de cinema, do fazer cinema, protagonizada por atores, diretores, técnicos e produtores de uma equipe de filmagem. O título expressa uma cena noturna filmada em pleno dia – efeito obtido com técnicas especiais de captação da imagem – daí sua tradução para o inglês “Day for night”; em italiano, “Effetto notte”. É um filme dentro do filme, metalinguagem pura. Crônica de uma equipe de filmagem durante a realização do filme “A chegada de Pamela”.


Cartaz do filme nos Estados Unidos
Gravado em estúdio na cidade de Nice, “A chegada de Pamela” é a história de um rapaz, Alphonse (Alphonse, Jean-Pierre Léaud) que se casa com uma jovem inglesa – Pamela (Julie Baker, Jacqueline Bisset). Durante uma visita do casal à família do rapaz na Riviera francesa, Pamela se apaixona pelo sogro (Alexandre, Jean-Pierre Aumont).

O diretor (Ferrand, Truffaut), logo no início da filmagem, exprime em voz off um sentimento profético: “Fazer um filme é exatamente como viajar de diligência pelo Velho Oeste; no início desejamos uma viagem tranqüila, mas rapidamente nos indagamos se chegaremos ao destino”. E as relações interpessoais entre membros da equipe (o ator principal, Alphonse/Léaud, pede a estagiária Liliane/Dani em casamento), os problemas na hora de gravar, se sucedem. Severine (interpretada por Valentina Cortese, atriz italiana indicada ao Oscar de melhor coadjuvante naquele ano), que interpreta a mãe de Alphonse, visivelmente embriagada, não consegue decorar sua fala.

Alphonse (Jean-Pierre Léaud) e Liliane (Dani)
Na verdade, o drama de Severine é maior do que parece. Ela quase não teria aceito o papel, porque seu filho estava em estado terminal, com leucemia. Detalhe da imagem fechando no casal de atores (Severine/Alexandre) abraçados – ele a consolando por suas recorrentes falhas – o restante da tela em negro; técnica muito usada nas primeiras décadas do cinema – como em “O gabinete do Dr. Caligari” (Robert Wiene, 1920) – e repetida em outras cenas de “Pamela”.

Severine (Valentina Cortese)
Diante de tanta dificuldade no set de filmagem, o diretor não tem o sono tranquilo; a cena (em preto-e-branco) de um menino andando no meio da noite com uma bengala, vai se repetir nos sonhos de Ferrand.

Os problemas continuam... O diretor de produção às voltas com uma mulher alheia à equipe, que está sempre próxima ao set, sentada, tricotando; “já começo a me habituar com ela por perto”, diz Ferrand. Alphonse que discute o tempo todo com sua noiva (a contra-regra Liliane, que é observada por Ferrand aos beijos com o diretor de fotografia). A atriz Stacy, que duvida da sua capacidade de interpretar, resiste em gravar uma cena em que aparece nadando de maiô numa piscina. Na verdade, Stacy está grávida, por isso não quer gravar a cena; mesmo assim, o produtor do filme tenta mantê-la, sugerindo alteração do roteiro, o que é prontamente recusado por Ferrand.

Jacqueline Bisset, anos 70

E chega a atriz hollywoodiana Julie Baker/J. Bisset, para fazer Pamela. Ela vem com o marido, um médico americano, que acompanha suas gravações, a convite de Ferrand. Alexandre (“galã” de meia idade), que ia com freqüência ao aeroporto, finalmente retorna ao estúdio com um rapaz que parece ser seu namorado, para a surpresa de todos. Improvisação de Ferrand, com sua assistente Joelle; eles re-escrevem parte do roteiro para uma cena que seria gravada na manhã seguinte, na qual Pamela e seu sogro (Alexandre) decidem fugir no meio da noite, “como dois ladrões”, fala sugerida pela colaboradora do diretor. A cena é gravada com sucesso, finalizada com a câmera fechando na janela da cozinha em que estão Pamela e Alexandre. A trilha é de uma música clássica, de melodia triunfante, presente também em outras cenas de “A noite”.

Julie Baker (J. Bisset) e Alphonse (J-P Léaud)
Liliane (a estagiária assistente) se apaixona pelo dublê inglês Mark, durante a gravação do acidente de carro com Pamela – a cena “day for night” – num vilarejo perto de Nice. Na volta ao estúdio, ela diz a Julie que vai deixar Alphonse e seguir com Mark para Londres. Um diálogo denso e cômico se entabula entre as duas, Liliane se abrindo sobre sua conturbada relação com o jovem ator. É Julie que dá a notícia a Alphonse, no momento em que toda a equipe posa para uma foto de recordação. Ele, em desespero, corre atrás de Liliane. Todos perplexos, trilha sugestiva de suspense. Câmera em plano detalhe, captando a expressão de vários personagens. Joelle – a assistente de Ferrand, e como ele uma apaixonada por cinema – ao ouvir de Julie a história da separação dos colegas, desabafa: “por um filme eu poderia abandonar um homem, mas por um homem, eu jamais abandonaria um filme”.

Truffaut e Welles, em 1966
Ainda longe de concluir o filme, Ferrand tem o sono perturbado, a cena do menino com bengala lhe aparece novamente em sonho; dessa vez, o mistério é revelado: o menino caminha até um cinema e, com a ajuda da bengala, furta os cartazes de “Cidadão Kane” (Orson Welles, 1941). Cena autobiográfica de Truffaut?

Numa confraternização no hotel onde a equipe está hospedada, Severine/Cortese rouba a cena, com suas histórias e ressentimentos de toda uma vida dedicada ao cinema. Alguns se preocupam com a ausência de Alphonse, que se recusa a sair do quarto e prefere curtir sua fossa sozinho.

Terminada a festa, Ferrand tanta demovê-lo de seu estado depressivo e encorajá-lo ao trabalho do dia seguinte, argumentando “é verdade que existe a vida privada, mas ela é complicada para todo mundo, os filmes são mais harmoniosos que a vida, eles avançam como trens no meio da noite; pessoas como você e eu foram feitas para ser felizes com o trabalho que fazem, que é o de fazer cinema”. Não dá certo, e Alphonse decide abandonar as filmagens; agora é Julie que tenta convencê-lo a permanecer. E consegue. Com sua beleza estonteante, ela seduz o mimado ator.

Ferrand (Truffaut) e Alphonse (J-P Léaud)
Mas Alphonse não entendeu que Julie só fez o que fez pela continuidade do filme, por amor ao cinema, e, frustrado com essa nova paixão, foge do set. Mais tarde ele retorna, faz “mea culpa” e se retrata com Julie e a equipe. Não bastassem tantos problemas, Alexandre sofre um acidente de carro fatal, quando levava seu "amigo" ao aeroporto. Mais improvisação no roteiro. Um dublê substitui Alexandre na cena final de “Pamela”: Alphonse mata o pai pelas costas com um tiro de pistola. Na cena final de “A noite”, o contra-regras Bernard traduz bem a idéia do filme, em entrevista para um repórter que buscava depoimentos sobre Alexandre, “espero que gostem do filme, tanto como nós gostamos de fazê-lo”.

Ferrand (Truffaut), a assistente Joelle e

contra-regras
A câmera estática é recorrente em “Pamela” – típico dos filmes franceses e europeus em geral – em contraste com os movimentos panorâmicos da câmera de “A noite” que mostram o ambiente frenético do set de filmagem.

O filme de Truffaut toma literalmente por objeto o cinema, pela representação de seus agentes produtores, reafirmando o conceito de metafilme estabelecido por estudiosos, como o francês Yannick Mouren, autor de “Truffaut, l’art du récit”
(Lettres Modernes/Minard, 1997) e “Filmer la création cinématographique – Le film-art poétique” (L’Harmattan, 2009).


Cartaz do filme na Itália
Segundo Mouren, “A noite americana” não seria propriamente um expoente da arte-poética (obra que exprime meta-arte e poesia do cineasta, sem explorar os limites da narrativa convencional), como outros que se valem da metalinguagem, como “Oito e meio” (Fellini, 1963), “Beware of a holy whore” (Fassbinder, 1970), “Memórias” (Woody Allen, 1980) e “Paixão” (Godard, 1981), entre outros. Isto porque Truffaut – que representa o diretor de “Pamela” – não é o protagonista central. De acordo com esse especialista em estudos cinematográficos, em termos de expressão metafílmica como “A noite”, destaque para os clássicos italianos “Bellissima” (Fellini, 1951) e “A dama sem Camélia” (Antonioni, 1953). Para especialistas brasileiros, a maior expressão da cine-poética nacional é Glauber Rocha.

Com ou sem poesia na criação narrativa do cineasta, “A noite americana” é um metafilme do começo ao fim, que mostra o lado humano por trás da realização de uma obra cinematográfica. Bastidores da vida real de profissionais engajados na arte de fazer cinema. Conforme palavras do próprio Truffaut, “mostra a glória dos atores e de todos os profissionais envolvidos na realização do filme, pessoas que exercem sua profissão com enorme prazer; o enredo enfatiza tanto suas vidas privadas, quanto o trabalho que elas realizam em comum”.


Jean-Pierre Léaud


















Jacqueline Bisset

2 comentários:

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  2. Adoro metalinguagem porque quase sempre resulta em "declaração de amor" muito especial à linguagem homenageada/abordada. Bom demais, principalmente para os cinéfilos, acompanhar, simultaneamente, os sentimentos e desventuras da equipe profissional e dos personagens do filme em andamento, dentro do filme. Acredito que acompanhar a representação do real e do fictício (tudo que os inúmeros personagens precisam contornar) é tão prazeroso quanto “testemunhar” a gravação de uma das cenas mais importantes do filme: o dia transformando-se em noite, artificialmente. Gosto demais também de “A Amante do Tenente Francês”...

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