terça-feira, 30 de março de 2010

A religião da catástrofe

Artigo publicado no Le Monde, em 27 de março de 2010

Por Henri Atlan
(Tradução: Antonio Pralon)

"Mesmo que a temperatura média aumente nas próximas décadas, ainda que a produção de CO2 seja uma variável pertinente, não há certeza alguma de que sua redução seja uma forma eficaz de prevenir um eventual aquecimento global.
"

Henri Atlan é médico, biólogo e professor emérito da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris; autor de vários livros, alguns publicados no Brasil, como "O útero artificial" (Instituto Piaget, 2007) e "Será a ciência inumana? - Ensaio sobre a livre necessidade" (Cortez, 2004).

Diante da quase unanimidade da classe política em relação ao clima, eis que o Front Nacional-FN [partido de extrema direita francês] soou as trombetas da contestação ao consenso, contestação essa já existente, embora bastante minoritária, à direita e à esquerda. Mas o fato de o FN apreender-se de um problema não significa que o problema não exista. Felizmente Claude Allègre [ver artigo postado em 2.2.10] e outros começaram a soar o alarme.

Vou abordar aqui a questão dos modelos. Há um problema de credibilidade dos modelos de mudanças climáticas e das previsões deles resultantes. Na verdade, esses modelos abrangem um domínio – o clima – em que a quantidade de dados disponíveis é pequena, em relação à quantidade de variáveis consideradas na sua elaboração, sem falar das variáveis ainda desconhecidas.


Isto significa que existe um grande número de variáveis de bons modelos, capazes de computar as observações disponíveis, ainda que fundamentados em hipóteses explicativas diferentes, que levam a diferentes e até opostas predições. Tratam-se, neste caso, de “modelos por observações”, caso particular de “sub-determinação das teorias pelos fatos”, bem conhecidos dos pesquisadores dedicados à construção de modelos de sistemas naturais complexos, em que a quantidade de dados não pode ser multiplicada em função de experiências repetidas e reproduzíveis. Consequência: os modelos sobre as mudanças climáticas não passam de hipóteses, em formato computacional bem sofisticado, mas cheios de incertezas em relação à realidade; do mesmo modo que as previsões deles resultantes.


O relatório do Grupo Intergovernamental de Especialistas em Clima (GIEC, ou IPCC, na sigla em inglês) não exclui essa informação, e algumas dessas incertezas são, inclusive, mencionadas. Mas, como o relatório completo é difícil de ser lido e compreendido pelo grande público e pelos agentes políticos, publica-se como adendo um documento abreviado com recomendações aos governantes. E mais incertezas surgem, pelo menos quanto ao possível aumento da temperatura média da Terra, a curto e médio prazos. O resultado é a crença cega no valor da verdade do modelo estabelecido pelos cientistas especialistas do clima e do caráter inelutável das predições mais ou menos apocalípticas.

Essa crença, repetida e amplificada por obras e discursos de grande impacto midiático, tomou a forma de um dogma e de uma religião do “salvar o planeta” em meio à grande parte da opinião pública mundial, quando se sabe que nosso planeta já teve dias piores e não corre perigo agora. Algumas geleiras polares se fundem, alguns glaciares recuam após terem avançado, algumas terras baixas e ilhas correm o risco de serem submergidas em um futuro próximo, ao mesmo tempo em que, talvez, seja um resfriamento que ameace outras regiões do globo. Reunir esses dados em um modelo global é mais do que arriscado, pois nada é menos seguro que a eficácia das medidas preconizadas para “salvar o planeta”.

Mudanças da mesma ordem de grandeza já aconteceram no passado. A importância das atividades humanas nas alterações climáticas observadas há algumas décadas é uma dessas incertezas que dependem do modelo adotado. Mesmo que a temperatura média aumente nas próximas décadas, ainda que a produção de CO2 seja uma variável pertinente, não há certeza alguma de que sua redução seja uma forma eficaz de prevenir um eventual aquecimento global. E nos dizem que, apesar das incertezas e até dos erros identificados, as conclusões dos estudos continuam válidas. Mas isto só faz reforçar a dúvida sobre o valor desses modelos: tão complexos e sub-determinados, que levam às mesmas conclusões, mercê de modificações não desprezíveis dos dados.

É preciso reconhecer que a especialidade científica em situação de incerteza é difícil. Poucos especialistas têm a coragem de assumir que são incapazes de dar resposta à demanda, mesmo em probabilidade. Muitas vezes são tentados a dar alguma resposta, seja com o intuito de tranqüilizar ou de prevenir. O sangue contaminado [
pelo vírus da AIDS, em sangue distribuído a hemofílicos pelo Centro Nacional de Transfusão Sanguínea da França, entre 1984 e 1985] foi um ponto de virada. A tendência a tranqüilizar, que antes parecia prevalecer foi derrubada, ao mesmo tempo em que se impunha cada vez mais o princípio da precaução.

Hoje os especialistas preferem muito mais ser profetas da infelicidade; de acordo com o profeta Jeremias, corre-se menos risco anunciando uma catástrofe do que uma boa notícia, pois em caso de erro sempre é possível argumentar que a catástrofe foi evitada graças àqueles que a anunciaram. O princípio da precaução uma vez aplicado suscita dúvidas sobre a catástrofe anunciada, o que já é perigoso para os especialistas, de quem se espera certezas e recomendações firmes.

No caso em questão, o IPCC foi constituído com uma missão bastante precisa, fortemente orientada, desde o começo, ao que deveria ser a conclusão do seu relatório. Tratava-se de avaliar de maneira clara e objetiva “as informações de origem científica, técnica e socioeconômica necessárias para compreender melhor os fundamentos científicos dos riscos ligados à mudança climática de origem humana” para, em seguida, apreciar possíveis conseqüências, visando medidas de adaptação e atenuação. Isto significa que, tidos como certos os riscos e sua origem humana, só restaria ao grupo de especialistas avaliar suas “bases científicas” e deduzir recomendações. Não fica bem nessas condições lançar dúvidas sobre a realidade dos riscos. Por outro lado, teria sido arriscado desconsiderá-los e perder toda credibilidade às vistas do poder político que, por sua vez, se nutre da opinião dos cientistas.

Mais importante do que impor medidas que ameaçam o desenvolvimento de países emergentes e em via de desenvolvimento, como também a economia de países desenvolvidos, em nome dessa nova religião de vocação universal, é enfrentar os problemas ambientais locais, como a poluição atmosférica das grandes cidades, a poluição de mares e rios causada pelo excesso de dejetos, fruto da superpopulação.

Como dizia um especialista do clima durante a realização da conferência de Copenhagen, o aquecimento climático não é visto da mesma maneira na Dinamarca e em Bangladesh, que sofre regularmente catástrofes naturais amplificadas pelo estado precário de cidades e vilas. Pode-se dizer o mesmo do Haiti e outros países pobres. Ao invés de se tentar prevenir riscos globais incertos adotando medidas globais de eficácia igualmente duvidosa, melhor seria resolver os problemas localmente, corrigindo o que seja possível e adaptando-se ao que seja inevitável em curto prazo, através de medidas de urbanização e, se necessário, de deslocamentos de populações.

Em vez de “salvar o planeta”, salvar as populações desnutridas e sem água potável. Planejar adequadamente a transição energética, permitindo aos países emergentes e pobres o uso de combustíveis fósseis, para lhes possibilitar recuperar o atraso, com o uso simultâneo de energias renováveis como solução para o esgotamento dos hidrocarbonetos que, embora inelutável, sua previsão é bem difícil de ser determinada com exatidão.

Pelo andar da carruagem, a religião ecológica do “salvar o planeta” pode nos levar a excessos ideológicos com risco até de um totalitarismo, como já preconizado por certas lideranças mundiais; tudo, evidentemente, em prol do bem estar da humanidade e em nome da “ciência”, tal como as ideologias totalitárias do século XX. Mas dessa vez com uma novidade, o “princípio da precaução”.

Ainda que as catástrofes anunciadas não sejam certas, nos dizem que não se corre risco algum com a aplicação das medidas preconizadas, em nome do princípio da precaução. Mas isso é falso. Na verdade, o que se põe em risco com algumas dessas medidas é o desenvolvimento das populações pobres e a economia das sociedades de consumo à qual elas aspiram. O bom senso imperou em Copenhagen. As aplicações do princípio da precaução envolvem riscos tão difíceis de avaliar quanto àqueles que ele diz prevenir. É por isso que, enquanto princípio geral de ação, ele é autodestrutível.

Afinal de contas, não é certo, mas é possível que exista o Deus dos teólogos. A famosa aposta de Pascal nada mais é do que a aplicação do princípio da precaução, com uma estimativa de riscos aceitável, apostando em um ganho maior, a felicidade eterna infinita. Aplicando o princípio da precaução nessa esfera, deveríamos a muito tempo ter decidido, com peso na consciência e culpa, aplicar as medidas de restrições e renúncias de todo tipo preconizadas pelos especialistas, isto é, os teólogos especialistas de Deus, assim como são os novos especialistas do clima. Felizmente nada disso aconteceu. Esperemos que as gerações futuras sejam tão sábias quanto àquelas que nos precederam.

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