quinta-feira, 22 de julho de 2021

Poluição luminosa: pesquisadores franceses alertam sobre consequências nefastas para biodiversidade

‘Excesso de luz artificial constitui fonte de perturbação para ecossistemas e representa desperdício energético considerável’, diz estudo

Imagem aérea noturna da Europa em 18 de março de 2021. FOTO: Pierre Boccon-Gibod

O Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS) propõe uma nova prática para combater a poluição luminosa: a adoção de “redes ecológicas escuras”.

A nova abordagem resulta de um estudo que sintetiza uma série de pesquisas sobre o impacto da luz artificial nos seres vivos. Ele revela os limites da política predominante para iluminação de espaços públicos como estratégia para atenuar os efeitos nocivos à vida causados por essas instalações.

A Associação Nacional para Proteção do Céu e do Meio Ambiente Noturnos (ANPCEN) da França estima que nos últimos 25 anos o número de pontos de iluminação nas ruas do país cresceu 90%, totalizando atualmente cerca de 10 milhões. O custo da eletricidade consumida mais a manutenção das instalações chegaria a 2 bilhões de euros anuais.

Os especialistas franceses do CNRS consideram insuficientes as políticas até então adotadas na França, como as “vias escuras fora do solo”, para mitigar os efeitos da poluição luminosa. A conclusão está no estudo “Rede ecológica escura – um novo conceito para lutar contra a poluição luminosa”, publicado em 24.2.2021.

De acordo com o estudo, as diretrizes gerais para a iluminação pública são mal adaptadas a escalas locais porque negligenciam as necessidades específicas de cada comunidade e de cada espécie animal.

Daí a proposta dos cientistas, de se criar “vias escuras”, com a participação e o aval de diferentes agentes, como gestores, representantes eleitos, especialistas em segurança e ecologia. A ideia é fazer da poluição luminosa tema de debate público.

Os autores do estudo do CNRS destacam quatro aspectos que são prejudicados pela iluminação artificial na França: cultural, econômico, sanitário e ecológico.

No plano cultural, o problema causado pelo excesso de luz elétrica em espaços públicos é a falta de visão do céu noturno. Cerca de um terço da população mundial não consegue enxergar a galáxia do Sistema Solar da qual a Terra faz parte, a Via Láctea. Na Europa, 60% dos habitantes são privados desta observação.

O impedimento à visão do céu noturno estrelado torna-se, assim, um traço comum à grande parte da humanidade, que consiste em ignorar a relação existencial entre o homem e o Universo.

No plano econômico, a poluição luminosa representa um enorme desperdício energético e, portanto, financeiro, uma vez que boa parte dessa energia é usada para iluminar desnecessariamente muitas áreas.

“A iluminação noturna artificial responde por 20% da eletricidade consumida mundialmente, 6% das emissões de CO2 e 3% da demanda global de petróleo. Só nos Estados Unidos, o desperdício é de 30%, a um custo anual de 3,3 bilhões de dólares e 21 milhões de toneladas de CO2”, diz o estudo do CNRS.

Já no aspecto sanitário, um problema particular da iluminação excessiva de espaços públicos diz respeito a certos tipos de luz artificial, como a azul, que afeta os ciclos circadianos em humanos e na fauna em geral, causando uma degradação da qualidade do sono e, consequentemente, da regeneração orgânica desses seres.

Por fim, no plano ecológico os efeitos da poluição da luz artificial são considerados catastróficos pelos autores do estudo do CNRS. Para exemplificar, eles citam um trabalho com tartarugas marinhas jovens, publicado na revista Espaces Naturels:

“Após a desova, elas se dirigem ao mar guiadas pela luz refletida na superfície da água (mais clara que no solo), mas quando há luz artificial elas são atraídas em direções opostas ao mar e se tornam vítimas de predadores e do calor produzido com o raiar do dia”.

Em síntese, “as consequências do excesso de iluminação artificial não se limitam apenas à privação da observação do céu noturno; elas constituem uma fonte de perturbações para a biodiversidade (alteração do equilíbrio presa-predador, dos ciclos de reprodução e migração...) e um desperdício de energia considerável”, diz o texto do CNRS.

Lançado recentemente por pesquisadores franceses na revista Ecology and Society, o conceito de “rede ecológica escura” evidencia a importância dos espaços escuros como “uma nova dimensão da conectividade ecológica”, colocando a preservação da biodiversidade no centro da luta contra a poluição luminosa.

O principal objetivo das redes escuras é promover a integração dos processos ecológicos associados às paisagens noturnas no planejamento de ações em prol da preservação dos ecossistemas e de sua biodiversidade. O novo conceito visa ao mesmo tempo evitar a fragmentação de paisagens e habitats noturnos e implementar as teorias da conservação nas práticas de gestão dos espaços públicos.

Um dos autores do artigo sobre redes ecológicas escuras, o doutor em geografia Samuel Challéat, e o especialista em gestão de espaços urbanos Dany Lapostolle reconstituída, em publicação de 2014, a história política da poluição luminosa.

A empreitada começa com astrônomos, preocupados com a deterioração das condições de observação de seus objetos de trabalho (os astros) causada pela iluminação artificial. Eles tratam do assunto em um Congresso realizado em Grenoble em 1976.

A comunidade de astrônomos franceses então elabora um estatuto para ecoar sua inquietação com a poluição luminosa, levando à criação em 1993 de uma associação voltada à proteção do céu noturno, que evolui para dar lugar à ANPCEN em 2006.

Logo a Associação francesa adere à sua homônima internacional Dark Sky Association, apoiando outras áreas de estudo igualmente afetadas pelo excesso de luz artificial, como a investigação sobre distúrbios do sono e pesquisas na área ambiental e ecológica.

A transversalidade dessas pesquisas dá origem, em 2010, a uma nova área do conhecimento: a “escotobiologia” ou o “estudo das reações biológicas e comportamentais que se desenvolvem sob ambientes escuros”.

Na França, os avanços progressivos desses novos conhecimentos são repercutidos pela ANPCEN que, desde o início dos anos 2000, se contrapõe sistematicamente às instâncias decisórias a respeito de iluminação pública e seu desenvolvimento.

Apoiada pelos resultados dos estudos científicos, cada vez mais recorrentes sobre poluição luminosa, a ANPCEN torna-se protagonista das negociações no âmbito do projeto de lei ambiental Grenelle I, de 2007, obtendo uma primeira vitória em 2008, com a adoção do artigo 36 no referido projeto de lei:

“As emissões de luz artificial que possam representar perigo ou perturbar excessivamente pessoas, fauna, flora ou ecossistemas, acarretando desperdício de energia ou impedindo a observação do céu noturno, estarão sujeitas a medidas de prevenção, eliminação ou limitação.”

Novos conflitos entre a ANPCEN e os poderes constituídos ocorreriam, no âmbito do projeto de lei Grenelle II, especialmente sobre o conceito de poluição luminosa, questionado pelos agentes públicos, sob pretexto de que ela “é invisível e não requer procedimento de descontaminação”.

A Associação contesta o argumento, reafirmando o caráter poluente da luz artificial quando esta torna-se “prejudicial à saúde dos animais, sejam eles humanos ou não”. Após um longo embate, o questionamento é neutralizado em prol de um objetivo comum às partes: a redução do consumo energético na iluminação pública.

Como resultado dessas negociações, as primeiras medidas concretas passam a compor a nova lei ambiental, que prevê a “regulação da iluminação interior de ambientes não residenciais (vitrines, escritórios, consultórios, etc) e de luzes de suas fachadas emitidas para o exterior, bem como os horários de funcionamento dessas instalações luminosas”.

Segundo o geógrafo Challéat, de 2014 para cá as tensões entre a ANPCEN e o poder político se atenuaram, porque os ecologistas focaram mais suas ações em otimizar as práticas de iluminação noturna do que em criminalizá-la.

Também porque a implementação das “vias escuras”, previstas nos projetos Grenelle, tem ampliado as atividades profissionais em iluminação urbana ou rural, que além de fornecer as instalações “passaram a atuar como gestores da transição entre os espaços luminosos e os não iluminados”, diz Challéat.

Assim como outros coautores do estudo, Challéat defende que as negociações para se concretizar a disseminação das vias escuras, dentro do conceito de redes ecológicas, precisa ser a mais ampla possível, envolvendo os habitantes das comunidades locais.

Se por um lado a necessidade de se replanejar a iluminação artificial é praticamente aceita por unanimidade, a ideia de envolver uma grande diversidade de atores nos processos decisórios é bem menos consensual. Os pesquisadores franceses tem ainda pela frente grandes desafios a superar.

Fontes: https://lareleveetlapeste.fr/le-combat-de-chercheurs-francais-pour-lutter-contre-la-pollution-lumineuse/?fbclid=IwAR1Y2EC0KZi3cI40U40sLft85b-DepkmSW13gIZhaH8cPlOXNmHGf2hAlQY

https://inee.cnrs.fr/fr/cnrsinfo/le-reseau-ecologique-sombre-un-nouveau-concept-pour-lutter-contre-la-pollution-lumineuse

https://solutionslocales.fr/moderniser-eclairage-public/?fbclid=IwAR0mU8jeq5CGoeSVF6MuBfotSMtjSaPClSfrDO1uMgqJLLonotRBGqolPU4

Nenhum comentário:

Postar um comentário