‘Excesso de luz artificial constitui fonte de perturbação para ecossistemas e representa desperdício energético considerável’, diz estudo
O Centro Nacional de Pesquisa
Científica da França (CNRS) propõe uma nova prática para combater a poluição luminosa:
a adoção de “redes ecológicas escuras”.
A nova abordagem resulta de um estudo que sintetiza uma série de pesquisas sobre o impacto da luz artificial nos seres vivos. Ele revela os limites da política predominante para iluminação de espaços públicos como estratégia para atenuar os efeitos nocivos à vida causados por essas instalações.
A Associação Nacional para
Proteção do Céu e do Meio Ambiente Noturnos (ANPCEN) da França estima que nos
últimos 25 anos o número de pontos de iluminação nas ruas do país cresceu 90%, totalizando
atualmente cerca de 10 milhões. O custo da eletricidade consumida mais a manutenção
das instalações chegaria a 2 bilhões de euros anuais.
Os especialistas franceses
do CNRS consideram insuficientes as políticas até então adotadas na França, como as “vias escuras fora do solo”, para mitigar os efeitos da poluição luminosa. A
conclusão está no estudo “Rede ecológica escura – um novo conceito para lutar
contra a poluição luminosa”, publicado em 24.2.2021.
De acordo com o estudo, as
diretrizes gerais para a iluminação pública são mal adaptadas a escalas locais
porque negligenciam as necessidades específicas de cada comunidade e de cada espécie
animal.
Daí a proposta dos
cientistas, de se criar “vias escuras”, com a participação e o aval de diferentes
agentes, como gestores, representantes eleitos, especialistas em segurança e ecologia.
A ideia é fazer da poluição luminosa tema de debate público.
Os autores do estudo do
CNRS destacam quatro aspectos que são prejudicados pela iluminação artificial na França:
cultural, econômico, sanitário e ecológico.
No plano cultural, o
problema causado pelo excesso de luz elétrica em espaços públicos é a falta de
visão do céu noturno. Cerca de um terço da população mundial não consegue enxergar
a galáxia do Sistema Solar da qual a Terra faz parte, a Via Láctea. Na Europa, 60%
dos habitantes são privados desta observação.
O impedimento à visão do
céu noturno estrelado torna-se, assim, um traço comum à grande parte da
humanidade, que consiste em ignorar a relação existencial entre o homem e o
Universo.
No plano econômico, a
poluição luminosa representa um enorme desperdício energético e, portanto, financeiro,
uma vez que boa parte dessa energia é usada para iluminar desnecessariamente
muitas áreas.
“A iluminação noturna
artificial responde por 20% da eletricidade consumida mundialmente, 6% das
emissões de CO2 e 3% da demanda global de petróleo. Só nos Estados Unidos, o
desperdício é de 30%, a um custo anual de 3,3 bilhões de dólares e 21 milhões
de toneladas de CO2”, diz o estudo do CNRS.
Já no aspecto sanitário,
um problema particular da iluminação excessiva de espaços públicos diz respeito
a certos tipos de luz artificial, como a azul, que afeta os ciclos circadianos em
humanos e na fauna em geral, causando uma degradação da qualidade do sono e,
consequentemente, da regeneração orgânica desses seres.
Por fim, no plano
ecológico os efeitos da poluição da luz artificial são considerados catastróficos
pelos autores do estudo do CNRS. Para exemplificar, eles citam um trabalho com
tartarugas marinhas jovens, publicado na revista Espaces Naturels:
“Após a desova, elas se
dirigem ao mar guiadas pela luz refletida na superfície da água (mais clara que
no solo), mas quando há luz artificial elas são atraídas em direções opostas ao
mar e se tornam vítimas de predadores e do calor produzido com o raiar do dia”.
Em síntese, “as
consequências do excesso de iluminação artificial não se limitam apenas à
privação da observação do céu noturno; elas constituem uma fonte de
perturbações para a biodiversidade (alteração do equilíbrio presa-predador, dos
ciclos de reprodução e migração...) e um desperdício de energia considerável”, diz o texto do CNRS.
Lançado recentemente por
pesquisadores franceses na revista Ecology and Society, o
conceito de “rede ecológica escura” evidencia a importância dos espaços escuros
como “uma nova dimensão da conectividade ecológica”, colocando a preservação da
biodiversidade no centro da luta contra a poluição luminosa.
O principal objetivo das
redes escuras é promover a integração dos processos ecológicos associados às
paisagens noturnas no planejamento de ações em prol da preservação dos
ecossistemas e de sua biodiversidade. O novo conceito visa ao mesmo tempo evitar a
fragmentação de paisagens e habitats noturnos e implementar as teorias da
conservação nas práticas de gestão dos espaços públicos.
Um dos autores do artigo
sobre redes ecológicas escuras, o doutor em geografia Samuel Challéat, e o
especialista em gestão de espaços urbanos Dany Lapostolle reconstituída, em publicação de 2014, a história política da poluição luminosa.
A empreitada começa com astrônomos,
preocupados com a deterioração das condições de observação de seus objetos de
trabalho (os astros) causada pela iluminação artificial. Eles tratam do assunto
em um Congresso realizado em Grenoble em 1976.
A comunidade de astrônomos
franceses então elabora um estatuto para ecoar sua inquietação com a poluição
luminosa, levando à criação em 1993 de uma associação voltada à proteção do céu
noturno, que evolui para dar lugar à ANPCEN em 2006.
Logo a Associação francesa adere à sua
homônima internacional Dark Sky Association, apoiando outras áreas de
estudo igualmente afetadas pelo excesso de luz artificial, como a investigação
sobre distúrbios do sono e pesquisas na área ambiental e ecológica.
A transversalidade dessas
pesquisas dá origem, em 2010, a uma nova área do conhecimento: a “escotobiologia”
ou o “estudo das reações biológicas e comportamentais que se desenvolvem sob
ambientes escuros”.
Na França, os avanços
progressivos desses novos conhecimentos são repercutidos pela ANPCEN que, desde
o início dos anos 2000, se contrapõe sistematicamente às instâncias decisórias
a respeito de iluminação pública e seu desenvolvimento.
Apoiada pelos resultados
dos estudos científicos, cada vez mais recorrentes sobre poluição luminosa, a
ANPCEN torna-se protagonista das negociações no âmbito do projeto de lei ambiental
Grenelle I, de 2007, obtendo uma primeira vitória em 2008, com a adoção do
artigo 36 no referido projeto de lei:
“As emissões de luz
artificial que possam representar perigo ou perturbar excessivamente pessoas,
fauna, flora ou ecossistemas, acarretando desperdício de energia ou impedindo a
observação do céu noturno, estarão sujeitas a medidas de prevenção, eliminação
ou limitação.”
Novos conflitos entre a
ANPCEN e os poderes constituídos ocorreriam, no âmbito do projeto de lei
Grenelle II, especialmente sobre o conceito de poluição luminosa, questionado
pelos agentes públicos, sob pretexto de que ela “é invisível e não requer
procedimento de descontaminação”.
A Associação contesta o
argumento, reafirmando o caráter poluente da luz artificial quando esta
torna-se “prejudicial à saúde dos animais, sejam eles humanos ou não”. Após um
longo embate, o questionamento é neutralizado em prol de um objetivo comum às
partes: a redução do consumo energético na iluminação pública.
Como resultado dessas
negociações, as primeiras medidas concretas passam a compor a nova lei
ambiental, que prevê a “regulação da iluminação interior de ambientes não
residenciais (vitrines, escritórios, consultórios, etc) e de luzes de suas
fachadas emitidas para o exterior, bem como os horários de funcionamento dessas
instalações luminosas”.
Segundo o geógrafo
Challéat, de 2014 para cá as tensões entre a ANPCEN e o poder político se atenuaram, porque os ecologistas focaram mais suas ações em otimizar as práticas de
iluminação noturna do que em criminalizá-la.
Também porque a implementação
das “vias escuras”, previstas nos projetos Grenelle, tem ampliado as
atividades profissionais em iluminação urbana ou rural, que além de fornecer as instalações “passaram a atuar como gestores da transição entre os espaços luminosos e os
não iluminados”, diz Challéat.
Assim como outros coautores
do estudo, Challéat defende que as negociações para se concretizar a disseminação
das vias escuras, dentro do conceito de redes ecológicas, precisa ser a mais
ampla possível, envolvendo os habitantes das comunidades locais.
Se por um lado a necessidade
de se replanejar a iluminação artificial é praticamente aceita por unanimidade,
a ideia de envolver uma grande diversidade de atores nos processos decisórios é
bem menos consensual. Os pesquisadores franceses tem ainda pela frente grandes
desafios a superar.
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