Dezenas de especialistas consultados afirmam em publicação que só a prática ecológica pode nos livrar de uma ‘era de confinamento crônico’
A jornalista francesa
Marie-Monique Robin e seu compatrício Serge Morant, ecologista e especialista
em doenças infecciosas, são os autores de “Fábrica de Pandemias – Preservar a
biodiversidade, um imperativo para a saúde” (Paris: Editora La Découverte),
obra que elucida porque “face a novas doenças contagiosas, a biodiversidade
é sinônimo de resiliência”.
Lançado em fevereiro de 2021, o livro é embasado por explicações de 62 cientistas, uníssonos em defender enfática e urgentemente a preservação da biodiversidade como solução para impedir futuras pandemias.
A gênese da obra foi o
artigo We Made the Coronavirus Epidemic, publicado no New York Times
em 20 de janeiro de 2020, do jornalista e divulgador científico americano David
Quammen. A partir de sua leitura, Robin convidou Morant para a empreitada: sintetizar
as convicções de um amplo grupo de especialistas sobre a origem da Covid-19 e como
evitar novas pandemias.
De fato, a atual pandemia
em nada surpreendeu os cientistas que expressaram suas convicções e que serviram
de base para a criação de Fábrica de Pandemias. Unânimes, afirmam que uma
pandemia de epidemias só pode ser evitada pela preservação da biodiversidade.
“E todos alertam para a
urgência de se adotar práticas verdadeiramente ecológicas para impedir que
entremos em uma era de isolamento social crônico”, declara Robin ao portal
France Inter, que entrevistou os coautores de Fábrica de Pandemias.
Para Morant, “a atual
pandemia pode ser tudo, menos uma surpresa, já que nos últimos 40 anos epidemias de doenças zoonóticas (ligadas a animais domésticos e selvagens) vem
crescendo. Em um mundo globalizado, elas se generalizaram; a partir de uma
grande metrópole como Wuhan (China), se estendem para o mundo todo, de
modo totalmente previsível”.
Marie-Monique Robin
acrescenta: “Li recentemente trabalhos de cientistas dos cinco continentes, de
todas as especialidades, zoólogos, parasitólogos, médicos, veterinários... todos
atribuem a ocorrência dessas pandemias ao colapso da biodiversidade.”
Sobre a origem do novo
coronavírus (Sars-Cov-2), “não há como afirmar com exatidão de onde surgiu;
sabemos que veio do morcego, mas não temos como afirmar qual animal foi o intermediário”, explica Robin.
Inicialmente, se pensava
que era o pangolim, mas essa hipótese foi descartada. “Uma pesquisadora analisou
amostras de 400 deles, capturados de traficantes na Malásia, mas nenhum era
portador do Sars-Cov-2. Um pangolim só poderia ter sido infectado no final da
cadeia de transmissão”, acrescenta a coautora do livro.
Segundo Robin, os
pesquisadores arrolados no livro defendem uma outra hipótese, a de que o vírus
pode ter origem na criação intensiva de porcos no entorno de Wuhan. “Houve uma
gripe suína na região, que pode ter escamoteado casos de infecção por
coronavírus”, relata.
Há também a hipótese da fuga
de patógeno de um laboratório (P4) de alta segurança biológica, que foi exportado da
França para a China. Instalado em Wuhan, o P4 é um nicho de agentes patogênicos (oriundos
de animais selvagens) criado pelo homem, que os especialistas classificam como “território de emergência”. Uma investigação da OMS está em curso e poderá trazer luz sobre
esta hipótese.
Cientistas descobriram os
mecanismos que explicam como a biodiversidade nos protege de doenças. Um deles
é a imunoecologia. “Testada em roedores, é um fenômeno pelo qual um fator-chave
beneficia um dado sistema, graças a um processo de regulação, evidenciando a
ecologia como parte da homeostase do indivíduo”, explica Morant.
Em outras palavras, “o
aprendizado da imunologia passa pelo encontro com vírus não necessariamente fatais,
que treinam o sistema imunológico”. Morant cita o caso da Tailândia, país onde
vive e que aloja uma grande quantidade de coronavírus. Só que a letalidade por
Covid-19 no país asiático tem sido quase 900 vezes menor que na França.
Marie-Monique Robin
reforça o argumento de Morant, lembrando que as previsões para a África eram de
milhões de mortes por Covid-19, o que não se confirmou, especialmente no meio
rural, onde não se mantém animais confinados.
“Um virologista do Gabão
explica que o gado ou animais domésticos tem contato com morcegos portadores de
coronavírus não exatamente iguais ao Sars-Cov-2, mas semelhantes o suficiente
para proteger parcialmente as populações quando são infectadas”, conta Robin.
Os africanos jovens quando
são expostos a uma grande biodiversidade fortalecem seu sistema imunológico, principalmente
por meio de sua flora intestinal (a microbiota), complementa a jornalista.
Outra explicação não menos
surpreendente é a de que os vermes intestinais, que normalmente infectam crianças, protegem seus organismos de processos inflamatórios agudos, caracterizados particularmente
como fatores de comorbidade da Covid-19.
Por outro lado, a
domesticação exerceu um papel importante na disseminação de novos vírus. Um
agente patogênico zoonótico nunca é transmitido diretamente para humanos. E o intermediário
mais efetivo é o porco, que compartilha 95% de nossos genes.
“De acordo com os
cientistas, um dos meios mais eficazes de se humanizar um vírus proveniente de
morcegos é a criação de suínos”, destaca a coautora de Fábrica de Pandemias.
Robin lembra que a noção de vírus emergentes é antiga, mas foi esquecida. “São
infecções novas, causadas pela evolução ou modificação de um agente patogênico ou
de um parasita existente”, ressalta.
Para Robin, a geopolítica
mundial tem um efeito nefasto sobre a compreensão do surgimento de novos vírus.
“Os melhores cientistas do mundo explicam as principais causas das doenças
infecciosas de cada época (Aids, Ebola, legiolenose, entre outras), atribuindo-lhes
uma origem entrópica ou antrópica, como o desmatamento. Tudo isso foi dito há
30 anos. Mas, com a queda da União Soviética, os Estados Unidos passam a
controlar o mundo”, ironiza.
“Priorizam a ‘doutrina da preparação’; ao invés de tomar medidas para evitar as pandemias, preferem se preparar para enfrentá-las. Não se concentram no que realmente precisa ser abordado: as causas entrópicas do surgimento dos vírus. Um fracasso total”, diz Robin.
Serge Morant acrescenta: “Esta
estratégia não funcionou. Não estamos preparados para a chegada de vírus
que ainda não conhecemos. É preciso voltar ao tratamento das causas da
incidência de doenças já conhecidas”. Segundo o coautor de Fábrica de Pandemias, a solução defendida pelos cientistas
passa por uma estratégia global para tratar da saúde planetária como única.
Diante dos desafios do
Antropoceno (a ação humana como a maior força geológica do planeta), a extinção
da biodiversidade e a mudança climática, temos que mudar o software, defende Marie-Monique
Robin, autora de Ladrões de Olhos, relato jornalístico sobre o tráfico de
órgãos, que lhe valeu o prêmio Albert Londres em 1995.
“É preciso reagrupar todos
os esforços científicos para que convirjam rumo a uma ‘ciência de soluções’, em
que as melhores competências se perguntem o que fazer para resolver estes
problemas planetários? Se tomamos as medidas corretas para o clima,
biodiversidade e saúde também serão beneficiadas”, assevera Robin.
Os autores de Fábrica de
Pandemias defendem, ainda, que lutar contra desigualdades sociais ajudaria a
preservar a saúde planetária. Robin cita um estudo de 2014, sobre a extinção de
civilizações antigas como as da Ilha de Páscoa e dos Mayas, que teria sido causada pela
superexploração dos recursos naturais e a concentração das riquezas produzidas.
Ela lembra que 28 bilionários possuem o mesmo que 3,5 bilhões de habitantes em todo o mundo e que a riqueza de 7 desses bilionários equivale ao que ganham 30% dos franceses. “Uma elite que vive em uma bolha e só tem como expandir sua riqueza à custa de mais devastação dos ecossistemas.”
Marie-Monique Robin elenca
alguns gestos concretos que ajudariam a preservar a biodiversidade: “Diminuir
o consumo de carne. Na Argentina ou no Brasil se desmata para produzir soja
transgênica para alimentar a criação industrial de frangos, porcos e gado.”
É preciso também, evitar o
consumo de óleo de palma (azeite de dendê), catastrófico para a biodiversidade, uma vez que globalmente a cultura de palmeiras é feita
à custa da destruição de milhões de hectares de florestas nativas mundo afora. “E
parar de arrancar árvores para fazer estacionamento, não concretar terras agrícolas e, se possível, praticar jardinagem”, conclui Marie-Monique
Robin.
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