sexta-feira, 2 de julho de 2021

Covid-19 e meio ambiente: preservação de biodiversidade para evitar pandemias é consenso entre cientistas, em livro lançado na França

Dezenas de especialistas consultados afirmam em publicação que só a prática ecológica pode nos livrar de uma ‘era de confinamento crônico’

Coautora do livro La Fabrique des Pandémies (Ed. La Découverte), a premiada jornalista francesa Marie-Monique Robin. https://www.lemediatv.fr/emissions/2021/covid-19-la-fabrique-des-pandemies-W_8vVvh-QNqdUXgZldRVkg

A jornalista francesa Marie-Monique Robin e seu compatrício Serge Morant, ecologista e especialista em doenças infecciosas, são os autores de “Fábrica de Pandemias – Preservar a biodiversidade, um imperativo para a saúde” (Paris: Editora La Découverte), obra que elucida porque “face a novas doenças contagiosas, a biodiversidade é sinônimo de resiliência”.

Lançado em fevereiro de 2021, o livro é embasado por explicações de 62 cientistas, uníssonos em defender enfática e urgentemente a preservação da biodiversidade como solução para impedir futuras pandemias.

A gênese da obra foi o artigo We Made the Coronavirus Epidemic, publicado no New York Times em 20 de janeiro de 2020, do jornalista e divulgador científico americano David Quammen. A partir de sua leitura, Robin convidou Morant para a empreitada: sintetizar as convicções de um amplo grupo de especialistas sobre a origem da Covid-19 e como evitar novas pandemias.

De fato, a atual pandemia em nada surpreendeu os cientistas que expressaram suas convicções e que serviram de base para a criação de Fábrica de Pandemias. Unânimes, afirmam que uma pandemia de epidemias só pode ser evitada pela preservação da biodiversidade.

“E todos alertam para a urgência de se adotar práticas verdadeiramente ecológicas para impedir que entremos em uma era de isolamento social crônico”, declara Robin ao portal France Inter, que entrevistou os coautores de Fábrica de Pandemias.

Para Morant, “a atual pandemia pode ser tudo, menos uma surpresa, já que nos últimos 40 anos epidemias de doenças zoonóticas (ligadas a animais domésticos e selvagens) vem crescendo. Em um mundo globalizado, elas se generalizaram; a partir de uma grande metrópole como Wuhan (China), se estendem para o mundo todo, de modo totalmente previsível”.

Marie-Monique Robin acrescenta: “Li recentemente trabalhos de cientistas dos cinco continentes, de todas as especialidades, zoólogos, parasitólogos, médicos, veterinários... todos atribuem a ocorrência dessas pandemias ao colapso da biodiversidade.”

Sobre a origem do novo coronavírus (Sars-Cov-2), “não há como afirmar com exatidão de onde surgiu; sabemos que veio do morcego, mas não temos como afirmar qual animal foi o intermediário”, explica Robin.

Inicialmente, se pensava que era o pangolim, mas essa hipótese foi descartada. “Uma pesquisadora analisou amostras de 400 deles, capturados de traficantes na Malásia, mas nenhum era portador do Sars-Cov-2. Um pangolim só poderia ter sido infectado no final da cadeia de transmissão”, acrescenta a coautora do livro.

Segundo Robin, os pesquisadores arrolados no livro defendem uma outra hipótese, a de que o vírus pode ter origem na criação intensiva de porcos no entorno de Wuhan. “Houve uma gripe suína na região, que pode ter escamoteado casos de infecção por coronavírus”, relata.

Há também a hipótese da fuga de patógeno de um laboratório (P4) de alta segurança biológica, que foi exportado da França para a China. Instalado em Wuhan, o P4 é um nicho de agentes patogênicos (oriundos de animais selvagens) criado pelo homem, que os especialistas classificam como “território de emergência”. Uma investigação da OMS está em curso e poderá trazer luz sobre esta hipótese.

Cientistas descobriram os mecanismos que explicam como a biodiversidade nos protege de doenças. Um deles é a imunoecologia. “Testada em roedores, é um fenômeno pelo qual um fator-chave beneficia um dado sistema, graças a um processo de regulação, evidenciando a ecologia como parte da homeostase do indivíduo”, explica Morant.

Em outras palavras, “o aprendizado da imunologia passa pelo encontro com vírus não necessariamente fatais, que treinam o sistema imunológico”. Morant cita o caso da Tailândia, país onde vive e que aloja uma grande quantidade de coronavírus. Só que a letalidade por Covid-19 no país asiático tem sido quase 900 vezes menor que na França.

Marie-Monique Robin reforça o argumento de Morant, lembrando que as previsões para a África eram de milhões de mortes por Covid-19, o que não se confirmou, especialmente no meio rural, onde não se mantém animais confinados.

“Um virologista do Gabão explica que o gado ou animais domésticos tem contato com morcegos portadores de coronavírus não exatamente iguais ao Sars-Cov-2, mas semelhantes o suficiente para proteger parcialmente as populações quando são infectadas”, conta Robin.

Os africanos jovens quando são expostos a uma grande biodiversidade fortalecem seu sistema imunológico, principalmente por meio de sua flora intestinal (a microbiota), complementa a jornalista.

Outra explicação não menos surpreendente é a de que os vermes intestinais, que normalmente infectam crianças, protegem seus organismos de processos inflamatórios agudos, caracterizados particularmente como fatores de comorbidade da Covid-19.

Por outro lado, a domesticação exerceu um papel importante na disseminação de novos vírus. Um agente patogênico zoonótico nunca é transmitido diretamente para humanos. E o intermediário mais efetivo é o porco, que compartilha 95% de nossos genes.

“De acordo com os cientistas, um dos meios mais eficazes de se humanizar um vírus proveniente de morcegos é a criação de suínos”, destaca a coautora de Fábrica de Pandemias. Robin lembra que a noção de vírus emergentes é antiga, mas foi esquecida. “São infecções novas, causadas pela evolução ou modificação de um agente patogênico ou de um parasita existente”, ressalta.

Para Robin, a geopolítica mundial tem um efeito nefasto sobre a compreensão do surgimento de novos vírus. “Os melhores cientistas do mundo explicam as principais causas das doenças infecciosas de cada época (Aids, Ebola, legiolenose, entre outras), atribuindo-lhes uma origem entrópica ou antrópica, como o desmatamento. Tudo isso foi dito há 30 anos. Mas, com a queda da União Soviética, os Estados Unidos passam a controlar o mundo”, ironiza.

“Priorizam a doutrina da preparação’; ao invés de tomar medidas para evitar as pandemias, preferem se preparar para enfrentá-las. Não se concentram no que realmente precisa ser abordado: as causas entrópicas do surgimento dos vírus. Um fracasso total”, diz Robin.

Serge Morant acrescenta: “Esta estratégia não funcionou. Não estamos preparados para a chegada de vírus que ainda não conhecemos. É preciso voltar ao tratamento das causas da incidência de doenças já conhecidas”. Segundo o coautor de Fábrica de Pandemias, a solução defendida pelos cientistas passa por uma estratégia global para tratar da saúde planetária como única.

Diante dos desafios do Antropoceno (a ação humana como a maior força geológica do planeta), a extinção da biodiversidade e a mudança climática, temos que mudar o software, defende Marie-Monique Robin, autora de Ladrões de Olhos, relato jornalístico sobre o tráfico de órgãos, que lhe valeu o prêmio Albert Londres em 1995.

“É preciso reagrupar todos os esforços científicos para que convirjam rumo a uma ‘ciência de soluções’, em que as melhores competências se perguntem o que fazer para resolver estes problemas planetários? Se tomamos as medidas corretas para o clima, biodiversidade e saúde também serão beneficiadas”, assevera Robin.

Os autores de Fábrica de Pandemias defendem, ainda, que lutar contra desigualdades sociais ajudaria a preservar a saúde planetária. Robin cita um estudo de 2014, sobre a extinção de civilizações antigas como as da Ilha de Páscoa e dos Mayas, que teria sido causada pela superexploração dos recursos naturais e a concentração das riquezas produzidas.

Ela lembra que 28 bilionários possuem o mesmo que 3,5 bilhões de habitantes em todo o mundo e que a riqueza de 7 desses bilionários equivale ao que ganham 30% dos franceses. Uma elite que vive em uma bolha e só tem como expandir sua riqueza à custa de mais devastação dos ecossistemas.

Marie-Monique Robin elenca alguns gestos concretos que ajudariam a preservar a biodiversidade: “Diminuir o consumo de carne. Na Argentina ou no Brasil se desmata para produzir soja transgênica para alimentar a criação industrial de frangos, porcos e gado.”

É preciso também, evitar o consumo de óleo de palma (azeite de dendê), catastrófico para a biodiversidade, uma vez que globalmente a cultura de palmeiras é feita à custa da destruição de milhões de hectares de florestas nativas mundo afora. “E parar de arrancar árvores para fazer estacionamento, não concretar terras agrícolas e, se possível, praticar jardinagem”, conclui Marie-Monique Robin.

Fonte: https://www.franceinter.fr/sciences/covid-19-marie-monique-robin-preserver-la-biodiversite-est-la-solution-pour-lutter-contre-les-pandemies?fbclid=IwAR2m_m78urC10Usju3KavArY7exe1PtpE1_jLHP_ch1v2sHTfsqlHVxwzEI

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