segunda-feira, 6 de abril de 2020

Noam Chomsky: 'Os Estados Unidos construíram uma distopia global'

Para o linguista, historiador, filósofo e professor, um amálgama de modelos totalitários e distópicos emerge no mundo

Noam Chomsky, palestrando no International Forum for Emancipation and Equality, em Buenos Aires, em 2015. (FOTO: Augusto Starita/Ministerio de Cultura de la Nación)

Em entrevista recente ao jornalista Robert Scheer, editor-chefe do portal Truthdig, Noam Chomsky expõe sua visão sobre o futuro da humanidade, que segundo ele já estaria sob um sistema global de tecno-vigilância.

Confrontado às obras ficcionais de Huxley e Orwell, ele explica por que já vivemos num mundo distópico, onde tecnologias de informação são usadas para controlar a sociedade.

Distopia, do grego dys (anomalia) e topos (lugar), é a antiutopia, ou uma utopia fundada em princípios degradantes, que pode representar um modelo de sociedade sob um poder totalitário, mas também um mundo pós-apocalíptico, advindo de uma catástrofe ambiental, uma guerra nuclear ou uma pandemia.

As distopias mais conhecidas estão em o “Admirável Mundo Novo” (1932), de Aldous Huxley, e “1984” (1949), de George Orwell. Mas é em “Nós” (1921), do russo Yevgeny Zamyatin e The Age of Surveillance Capitalism (2019), da americana Shoshana Zuboff, que Chomsky se baseia para descrever o modelo de sociedade sob tecno-vigilância já em curso nos EUA e outros países.

O cenário de “Nós” é um mundo geométrico, racional e programado, regido por um Estado totalitário que planeja cientificamente a “felicidade aritmética” dos seus cidadãos. O romance se desenrola no contexto do regime soviético dos anos 1920; por meio dele, Zamyatin se insurge contra a despersonalização do indivíduo e fustiga a sociedade mecanizada que emerge no início do século XX.

Já em “Capitalismo de Vigilância”, o foco está na coexistência dos capitalismos empresarial e “de vigilância”, ambos operando sob a mesma lógica. O cidadão tem sua privacidade invadida pelas grandes corporações da comunicação digital, sem que os Estados possam legislar sobre a natureza de seus negócios, como explica em sua tese de doutorado Lucas Bambozzi, pesquisador em novas mídias.

Na visão de Chomsky, empresas como Google, Amazon e outras, que operam nos Estados Unidos e no exterior, encontram continuamente novas maneiras de exercer controle sobre a humanidade.

As informações coletadas por essas empresas, ao nos propor uma publicidade, por exemplo, de um restaurante tailandês (previamente sabem que você gosta da culinária tailandesa) quando chegamos em uma cidade que não conhecemos, não são usadas apenas para esta recomendação, mas também “para nos controlar”, diz Chomsky.

Na Suécia, chips high-tech subcutâneos começam a se popularizar entre trabalhadores. “Aqueles que aceitam implantar sob a pele um chip desses tem acesso gratuito à máquina de café e outros benefícios, só que o chip controla também suas ações.”

“O tipo de modelo para o qual a sociedade caminha já é realidade na China, onde operam robustos sistemas de vigilância, ao que eles chamam de sistema de crédito social. A pessoa recebe um determinado número de pontos; se ela viola uma regra de trânsito, perde alguns, mas se ajuda uma senhora a atravessar a rua, ela ganha pontos”. Logo isto será normalizado e a vida da pessoa será condicionada ao cumprimento de regras pré-estabelecidas, explica o professor do MIT.

São vários os exemplos de tecno-vigilância citados por Chomsky. “À medida que avançamos para a ‘internet das coisas’, todos os equipamentos ao seu redor, sua geladeira, escova de dentes, etc. estarão obtendo informações sobre o que você está fazendo e prevendo fazer, tentando controlar os seus passos e aconselhar o que você deve fazer em seguida”.

Talvez o mais alarmante seja Chomsky afirmar que “Huxley estava certo” ao postular que as pessoas podem não ver [esta forma de vigilância] como invasiva; elas veem apenas como algo da vida, como o sol que nasce de manhã”.

Em “Admirável Mundo Novo”, Huxley descreve uma ditadura perfeita, com aparência de democracia, onde as pessoas são escravizadas, mas, por meio de um sistema de consumismo e entretenimento, elas se sentem felizes e nunca almejam se libertar.

Para além da relação imbricada entre a personalização dos serviços e a tecno-vigilância planejada, o linguista avalia que o aquecimento climático é uma ameaça direta à sobrevivência da espécie humana.

“Se pensarmos que estamos aqui há cerca de cem mil anos, supõe-se que devemos ser a espécie mais inteligente, mas atualmente estamos destruindo a possibilidade de uma vida humana organizada”, estima o criador da gramática gerativa.

Em seu livro “O império americano: hegemonia ou sobrevivência” (2014), Chomski se apoia na tese do biólogo Ernst Mayr, para quem “a inteligência parece ser uma forma de mutação letal”. Em sua visão, o chamado “sucesso biológico” -que permite a permanência e a proliferação da espécie- acontece na medida inversa da escala do que se entende por inteligência; quanto mais alta, menor a capacidade de sobrevivência.

Nesta ótica, Chomsky fala do incrível fracasso global em lidar com a crise climática e a corrida armamentista nuclear, que estão levando a humanidade a um precipício, do qual pode ser difícil se afastar.

Chomsky se diz convencido de que os dirigentes da ExxonMobil ou da JPMorgan Chase sabem tanto do aquecimento climático quanto qualquer um de nós; “eles sabem que a intensificação do uso de combustíveis fósseis certamente irá inviabilizar as possibilidades de uma vida humana organizada.”

Para o socialista libertário, o presidente Trump, que elogia aqueles dirigentes como “os melhores e mais brilhantes”, tenta agradar ao mesmo tempo seus fiéis eleitores e os ricos poderosos, para assim controlar os demais. Daí o seu discurso em favor dos combustíveis fósseis, do uso intensivo do carvão.

“A administração Trump chegou a produzir um relatório de 700 páginas, que prevê um cenário descrito por cientistas como cataclísmico, com uma elevação de temperatura de 3,9 oC até o final do século, ou seja, o dobro do que a vida humana poderia suportar”, prossegue Chomsky.

A reação de Trump, lamenta o linguista, foi o deboche: “não vamos impor controle sobre emissões de carros e caminhões; já que teremos que atravessar o penhasco do todo jeito, porque não fazê-lo de forma divertida?”

Mas o aquecimento climático não é a única grande ameaça à humanidade, pondera o pensador americano, autor de dezenas de livros. Chomsky diz que outra grande ameaça é uma guerra nuclear. A interrupção do tratado de desarmamento nuclear, “que nos manteve vivos até agora [é uma ameaça]; de certo modo é um milagre termos sobrevivido a isso, se olharmos para a história das armas nucleares”.

Agora podemos produzir livremente cada vez mais armas de destruição em massa, e não apenas nos Estados Unidos, já que outros países também podem fabricá-las, para manter os negócios globais do setor bélico, afirma Chomsky.

“Nunca houve um momento mais crítico na história do homem, este em que devemos nos perguntar: nossa espécie sobreviverá sob alguma forma reconhecível? E vale também para outras espécies, já que muitas estão sendo destruídas a uma taxa nunca antes observada”.

Em entrevista ao filósofo Srecko Horvat, no último dia 28 de março, Noam Chomsky analisa o cenário da pandemia do novo coronavírus e traça um quadro desolador para o futuro próximo. Para ele, a atual crise de coronavírus é consequência de uma falha colossal do mercado, causada pela “selvagem intensificação neoliberal de profundos problemas sócio-econômicos”.

“Sabia-se da provável ocorrência de uma pandemia dessas, com a mutação do vírus SARS surgido 15 anos atrás, mas ela foi subestimada. Desde aquele momento, laboratórios do mundo todo poderiam estar trabalhando para criar uma proteção contra uma potencial pandemia de coronavírus.”

E por que não fizeram isso? A resposta passa pela indústria farmacêutica, estima Chomsky. “Entregamos nosso destino à tiranias privadas, corporações, que são de difícil compreensão do público, neste caso o Big Pharma”, explica. Eles preferem criar cremes para o corpo, porque são mais lucrativos do que desenvolver uma vacina.

Chomsky avalia que “é possível o governo intervir, voltar às mobilizações dos tempos de guerra, como no caso da pólio, uma terrível ameaça que foi contida pela vacina de Salk (em 1955), desenvolvida por uma instituição estatal da administração Roosevelt”, conclui.

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