Trabalhador de
um canteiro de obras de demolição de um navio, contendo diversos materiais à
base de amianto, em Chittagong (Bangladesh)
O Brasil parece um trem fora dos trilhos. Avança desgovernado, em nível federal e estadual, na contramão de princípios civilizatórios básicos, de respeito ao ser humano e ao meio ambiente.
Não bastasse a liberação de 28 agrotóxicos barrados na União Europeia, 36 na Austrália, 30 na Índia e 18 no Canadá... não é que o manuseio do amianto, de alta letalidade, pode voltar?
Em
nota divulgada no último dia 11 pela Eternit, controladora da mineradora
SAMA, a empresa anuncia aos seus acionistas e ao mercado que “estará processando o
minério remanescente extraído anteriormente à paralisação da mineradora”, baseada
em uma Lei do Estado de Goiás promulgada em 24.9.2019.
O
minério em questão é o famigerado amianto, usado principalmente na fabricação
de telhas e caixas d’água. Provoca câncer de pulmão e foi banido em mais de 70
países pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O Brasil é o terceiro maior
produtor de amianto do mundo, atrás da China e da Rússia.
Os
efeitos deletérios à saúde humana das fibras de amianto são conhecidos há mais
de 100 anos. As afecções pulmonares causadas em decorrência da inalação do pó desse minério por trabalhadores da indústria e da construção civil constam das Tabelas
de Doenças Profissionais desde 1945.
De
acordo com o “dossier especial” O Amianto no Mundo (L’Amiante dans le monde)
publicado pela HESA (Higher Education Statistics Agency) em 2005, estima-se
que nos primeiros 30 anos do século XX, 500 mil pessoas tenham morrido de
câncer causado por exposição ao amianto, apenas na Europa Ocidental.
O
período entre uma primeira exposição ao pó de amianto e a incidência de um
mesotelioma pleural, um câncer particularmente letal que afeta a membrana
envolvendo os pulmões (a pleura), varia entre 30 e 40 anos.
Uma
verdadeira bomba-relógio, que explica, por exemplo, porque mais de vinte anos
após sua interdição na França, em 1997, o amianto continua a fazer vítimas
fatais. E nos últimos anos, em ritmo mais acelerado.
De
acordo com um relatório da Santé Publique France (Saúde Pública França),
publicado em junho de 2019, desde então são 1.100 novos casos de mesotelioma
pleural diagnosticados anualmente no país, ante 800 casos no final de 1990.
90%
dos homens afetados por este tipo de câncer na França mantiveram contato
com o amianto ao longo de suas vidas profissionais, com uma duração de média de
exposição de 27 anos. Metade deste contingente eram trabalhadores da construção
civil.
Já
entre as mulheres francesas, em quantidade muito inferior na indústria do
amianto ou na construção civil, para cada três casos da doença, apenas um está
relacionado a outro tipo de exposição.
Pode
ser pela presença de amianto em casa ou em eletrodomésticos, ou ainda pela
proximidade de fontes industriais, naturais ou provenientes de construções ou
reformas, explica Dorothée Grange, epidemiologista da Santé Publique France.
“O
contato quotidiano com uma pessoa exposta ao amianto também pode ser a causa. Basta
que a pessoa chegue em casa com as roupas de trabalho impregnadas de fibras”, complementa a Dra. Grange.
E
ainda hoje o amianto se faz onipresente na França (e em quantos outros países?),
não só porque seus efeitos anteriores a 1997 não param de ser constatados, como
também devido à degradação dos materiais à base deste minério que continuam sendo
utilizados, esclarece a epidemiologista Anabelle Gilg Soit Ilg.
O
comunicado da Eternit diz que “o beneficiamento do minério se dará em caráter
temporário” e visa a exportação de cerca de 24 mil toneladas de fibra de
amianto.
Só
que o Supremo Tribunal Federal (STF) decretou, em novembro de 2017, o banimento
do amianto em território nacional. Ou seja, a lei promulgada pelo governo de
Goiás é frontalmente inconstitucional.
A
Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) entrou com uma ação
direta de inconstitucionalidade da lei goiana, que deveria ter sido julgada no
último dia 7, mas foi suspensa.
O
advogado da ANPT que assina a ação, Mauro Menezes, considera “uma afronta muito
severa” da empresa à jurisdição do STF. Ele lembra que as decisões da suprema
corte sobre constitucionalidade de leis federais têm “eficácia vinculante” e
nenhum estado da federação pode ignorá-la ou desafiá-la com leis em sentido oposto.
Tamanha
afronta de uma empresa de mineração, em conluio com agentes públicos estaduais,
mostra que o ordenamento jurídico brasileiro está cada vez mais desmoralizado e
desacreditado.
Nunca
é demais lembrar que neste mesmo estado (Goiás) em 1987 quatro pessoas morreram
e centenas ainda padecem de sérios problemas de saúde, causados pela exposição
inadvertida ao césio-137, um material altamente radioativo.
O
césio-137 estava encapsulado em uma clínica radiológica abandonada, mas foi levado
por catadores de recicláveis a um ferro-velho, onde foi exposto aos seus
compradores, dando início a uma contaminação em série.
Famílias
inteiras foram afetadas e, 33 anos depois do acidente, as vítimas ainda reclamam da fata
de assistência do estado de Goiás.
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