quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Transição energética para fontes renováveis pode ser paga com vidas salvas e ganhos de produtividade, diz cientista

Poluição atmosférica causada por combustíveis fósseis é muito mais deletéria do que se imagina

Chaminés emitindo gás poluente à beira da rodovia estadual 95 em Baltimore, Maryland (EUA), em 17.12.2019. FOTO: Andrew Lichtenstein/Corbis via Getty Images

“Uma intensificação nos próximos 20 anos do uso de energias limpas em detrimento de fontes poluentes pode salvar 1,4 milhões de vidas, apenas nos Estados Unidos”.

É o que diz um estudo liderado por Drew Shindell, objeto do artigo Air pollution is much worse than we thought, do especialista em energia e mudança climática David Roberts, publicado ontem no site vox.com.

“A poluição do ar é muito pior do que pensávamos; o descarte de combustíveis fósseis poderia ser pago apenas com ar puro”, escreve Roberts.

Entre os acidentes com combustível fóssil que marcaram os EUA no século passado estão o derramamento de 100 mil barris de petróleo na costa de Santa Bárbara, Califórnia, e a queima de óleo que gerou incêndios na superfície do rio Cuyahoga, em Ohio, ambos nos anos 60.

Esses e outros eventos sombrios deram origem ao movimento ambientalista moderno e uma década excepcional em termos de legislação e regulamentação ambiental para o país. Dos anos 70 até o início do século XXI, a luta contra os combustíveis fósseis era uma luta contra a poluição, especialmente a atmosférica.

Nas duas décadas seguintes, a questão dos combustíveis fósseis foi reformulada como um problema climático, em razão do aquecimento global causado pelas emissões de CO2. E não há dúvida sobre o impacto da mudança climática no bem-estar humano a longo prazo.

A ironia que traz essa alteração de foco é que a poluição do ar é o melhor argumento contra a energia de origem fóssil. De fato, mesmo com os holofotes da mídia voltados para o impacto climático das emissões, seu aspecto poluidor do ar tem se tornado cada vez mais evidente, na medida em que a ciência avança.

Especialistas em qualidade do ar estão muito mais preparados para identificar os efeitos diretos e indiretos da poluição atmosférica na saúde humana, e as notícias não são nada boas.

As evidências científicas agora são claras o suficiente para afirmar que valeria a pena nos livrarmos dos combustíveis fósseis mesmo que não houvesse aquecimento global. Com o custo da energia renovável cada vez mais baixo, apenas com o benefício da melhoria da qualidade do ar seria possível pagar a transição energética.

Esta foi a conclusão de um estudo apresentado recentemente ao Comitê Legislativo de Supervisão e Reforma (House Committee on Oversight and Reform), coordenado por Drew Shindell, professor emérito de ciências da terra da Universidade Duke, em Durham, Carolina do Norte. Shindell, que também é um dos autores dos dois últimos relatórios do IPCC, revela que o efeito da poluição do ar na saúde é quase duas vezes maior do que se estimava anteriormente.

Shindell e sua equipe quantificaram os benefícios sociais e de saúde que poderiam ser produzidos por um novo e ambicioso plano do governo americano para intensificar a economia de baixo carbono no país até 2035. Eles utilizaram um modelo climático do Instituto Goddard da NASA, adaptando-o “para representar a poluição do ar com uma resolução relativamente alta”. “O modelo foi adequado para avaliar simultaneamente o impacto do clima e da qualidade do ar [na vida humana]”, diz Shindell.

A equipe simulou a trajetória de redução das emissões de gases de efeito estufa nos EUA para o período de 2020 a 2070, seguindo a recomendação do IPCC de limitar o aquecimento atmosférico a 2 oC, visando quantificar a qualidade do ar e os benefícios climáticos.

A conclusão da pesquisa é surpreendentemente alvissareira: “seriam evitadas nos próximos 50 anos 4,5 milhões de mortes prematuras, cerca de 3,5 milhões de hospitalizações e atendimentos de urgência e aproximadamente 300 milhões de dias de trabalho perdidos”.

A economia com as mortes, cuidados médicos e horas de trabalho evitadas são avaliadas em 37,112 trilhões de dólares (US$), sendo US$ 37 trilhões referentes às mortes evitadas, US$ 37 bilhões aos gastos com saúde e US$ 75 bilhões aos ganhos de produtividade. Isto equivale em média a US$ 700 bilhões por ano, que poderiam ser destinados à melhorias da saúde e do trabalho, representando um valor muito superior ao custo da transição energética para fontes de energia limpa.

A poluição do ar causa anualmente quase 250 mil mortes prematuras nos Estados Unidos. Uma redução drástica das emissões de carbono poderia evitar 1,4 milhões de mortes nos próximos 10 anos, e reduzir em 40% o total de mortes prematuras nas próximas duas décadas.

“Este número de mortes é quase três vezes maior que o total de mortos por acidentes de carro e supera o número de americanos que perdemos a cada ano para o diabetes”, comentou na audiência o deputado por Illinois, Robin Kelly.

Se os números são eloquentes é porque a ciência tem evoluído rapidamente. “As pesquisas desenvolveram-se muito nos países em desenvolvimento, particularmente na China, que produziram um grande volume de dados e um panorama mais completo dos efeitos reais da poluição do ar sobre a saúde”, destaca Shindell.

Por exemplo, atualmente os cientistas sabem que a exposição à poluição atmosférica (partículas minúsculas e microscópicas) provoca danos cerebrais em fetos e crianças. Mesmo que não entendam completamente os mecanismos biológicos, eles sabem que a contaminação do ar afeta o controle dos reflexos e do desempenho intelectual. Como também constatam prejuízos ao rim, ao baço e ao sistema nervoso. “Os [novos] estudos mostram que a poluição do ar parece afetar quase todos os órgãos do corpo humano”, acrescenta Shindell.

Os pesquisadores da Universidade Duke avaliaram também o impacto sobre a saúde de um dos efeitos bem conhecidos do aquecimento climático: as ondas de calor extremo. “Os resultados apontam impactos quase duas vezes maiores do que indicavam estudos interiores”, afirma Shindell. Ele estima que os números reais podem ser ainda maiores, já que há evidência de alguns efeitos que não podem ser quantificados.

Os benefícios de uma melhoria da qualidade do ar nos Estados Unidos deverão se impor, independentemente das ações que o resto do mundo promova em favor do clima. O cenário projetado pela equipe de Shindell revela que os EUA sozinhos podem propiciar mais de dois terços do benefício à saúde, que seriam obtidos com uma ação global efetiva de combate à mudança climática.

As centenas de bilhões de dólares que poderiam ser economizados pelas vidas salvas e pela redução de gastos com saúde representam muito mais que os investimentos necessários para bancar a transição energética. Mesmo sem pensar em mudança climática, vale a pena abandonar os combustíveis fósseis, conclui David Roberts.

De acordo com um estudo feito por cientistas alemães, publicado no European Heart Journal em 2019, quase 800 mil pessoas morrem prematuramente na Europa a cada ano por causa da poluição atmosférica. No mundo todo, o número de óbitos estimado é de 8,8 milhões (2015), 75% deles relativos a pessoas com mais de 60 anos. Na França, de cada mil mortes, uma é atribuída à má qualidade do ar.

A título de comparação, seguem alguns números sobre causas diversas de letalidade em escala global: 7,2 milhões de pessoas morrem por ano, vítimas do tabagismo (dados da OMS, 2015); a AIDS faz 1 milhão de vítimas fatais todos os anos; cerca de 600 mil pessoas morrem de malária anualmente.   

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