As consequências do conflito militar em solo europeu sobre a trajetória de emissões globais de carbono são ainda incertas
Incertezas sobre o suprimento energético para os países do velho continente vão acelerar os investimentos em energias renováveis ou pôr em xeque acordos climáticos já firmados, permitindo a revisão de metas de redução de emissões de carbono?
Após quase três meses de guerra na Ucrânia, o custo ambiental local é inegável, mas suas consequências sobre o clima global são uma incógnita, diante do embargo imposto pela União Europeia à importação de gás e petróleo da Rússia.
Entre os países com
território na Europa, a Ucrânia é menor apenas do que a Rússia e a Turquia, e
maior do que a França e a Espanha. É o maior produtor de trigo do continente; 40%
de sua produção de trigo e milho é exportada, principalmente para o Egito,
Indonésia, Filipinas e Turquia, abastecendo centenas de milhões de pessoas.
Segundo o Programa de
Identificação de Sites Tóxicos (TSIP, na sigla em inglês) -que monitora 5.000 localidades
tóxicas mundo afora-, a Ucrânia dispõe de 75 sites potencialmente poluidores, muitos
deles já impactados pelos bombardeios desde o início da guerra, em 24 de
fevereiro.
Acrescentem-se os
componentes tóxicos das munições usadas nas armas de combate, que liberam no
solo e nas águas de rios, lagos e lençóis freáticos chumbo e outros metais
pesados, como o mercúrio, cobre e zinco, que podem desestabilizar a biodiversidade
por décadas e comprometer a produção agrícola do país. Sem falar no risco de
poluição generalizada por radiatividade.
A Ucrânia tem o 8º parque
nuclear do mundo, com uma potência instalada de 13.100 MW (Mega Watts), gerada por 15
reatores em 4 centrais. Em 4 de março, a termelétrica de Zaporozhye (a
maior da Europa, com 5.700 MW) foi alvo de combates, mas os reatores não foram
atingidos. Se danificados, teríamos uma catástrofe que nos faria lembrar
Chernobil.
Sendo a economia russa fortemente calcada na exportação de petróleo e gás e a União Europeia seu principal
mercado, as primeiras sanções econômicas contra o país invasor visaram o
embargo das importações dessas commodities, com o apoio decisivo dos Estados
Unidos, principal patrocinador do sistema de defesa militar da Europa (OTAN).
Às vésperas da eclosão do
conflito ucraniano, a Alemanha cancelou a certificação do projeto Nord Stream 2,
um gasoduto de 1.234 km, que vai da cidade russa de Vyborg à alemã Greifswald, tendo a maior parte de sua extensão sob o Mar Báltico. O Nord Stream 2 permitiria
dobrar a capacidade de suprimento de gás natural aos países europeus.
De acordo com um relatório publicado em 27 de abril pelo Centro de Pesquisa em Energia e Ar Limpo (CREA, na sigla em inglês), um
organismo internacional independente, desde o início
da guerra, a União Europeia reduziu suas importações de petróleo e carvão da Rússia em 20% e 40% respectivamente, mas aumentou em 10% a de gás.
A Comissão Europeia e os Estados Unidos propuseram uma alternativa ao gás russo, baseada na importação do país norte americano. Só que, para atender à crescente demanda dos países europeus -em um contexto de retomada econômica pós-pandemia-, o gás proveniente dos EUA representaria menos de 10% do volume fornecido habitualmente pela Rússia a um preço muitas vezes menor.
Além disso, a importação
de gás natural liquefeito de um outro continente requer a construção de uma
infraestrutura de transporte e distribuição altamente custosa e que vai demorar
anos para se tornar operacional. Um projeto contestado por muitos
ambientalistas, que clamam por maiores investimentos em energias renováveis.
Recentemente, no bojo de
um novo pacote de sansões, Bruxelas aprovou o embargo total à importação de
petróleo russo em até seis meses, um prazo aparentemente limitado para que a
demanda europeia de combustíveis seja suprida por outros produtores ou para um
redesenho de matrizes energéticas com participação consideravelmente maior de
fontes renováveis.
Na melhor hipótese, estima-se
que a alternativa de importação de outros países da OPEP teria um custo bem
maior, impactando o processo inflacionário em curso, que tem corroído o poder aquisitivo da população em
muitos países europeus. Para alguns analistas, isto poderia levar a um cenário
de crise global semelhante ao de 1973, quando os preços do petróleo explodiram.
Há cerca de dois meses, o
secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, alertava sobre o risco de um retardamento ainda maior da transição
energética na Europa, devido ao conflito militar na Ucrânia. “Impactados pelo déficit imediato em seus suprimentos
energéticos, os países podem rever ou negligenciar as políticas que visam reduzir
o consumo de combustíveis fósseis”, declara Guterres.
Com forte dependência do
gás russo, a Alemanha sinaliza que “poderá” suspender o fechamento,
anteriormente previsto, de algumas termelétricas a carvão, assim como a
Bulgária. A Bélgica decidiu adiar o abandono da energia nuclear. Por sua vez, a
Itália, outro país muito dependente do gás da Rússia, vai acelerar seus
projetos de energia eólica offshore no Mediterrâneo. A Alemanha também deve aumentar
a produção de energias renováveis.
Se por um lado a guerra na
Ucrânia pode favorecer ações para o desenvolvimento de fontes renováveis de
energia na Europa, por outro lado, ela pode prejudicar os acordos climáticos já firmados e
futuros compromissos internacionais dos países mais emissores de carbono.
Os dois maiores poluidores
do planeta, China e Estados Unidos, respondem juntos por cerca de 40% das
emissões totais de gases de efeito estufa (GES). Desde o Acordo de Paris (2015), esses
países estabeleceram negociações bilaterais para a redução de suas emissões poluentes.
No entanto, em tempos de
guerra, e não de uma “guerra qualquer”, mas de um conflito militar que pode levar
a uma mudança significativa da geopolítica global, torna-se mais difícil o
entendimento entre as duas maiores economias do mundo.
“As relações entre os
Estados Unidos e a China podem ser abaladas pelo posicionamento do país asiático
sobre a Rússia [por sua intervenção bélica na Ucrânia]; o contexto atual é
menos propício à cooperação internacional”, explica Erick Lachapelle, professor
de Ciência Política da Universidade de Montreal.
Sejam quais forem os
desdobramentos geopolíticos da guerra na Ucrânia, a ciência climática é
inequívoca e seus sucessivos alertas são enfáticos, conforme constam nos dois
relatórios do IPCC publicados em 2022.
Se cumpridos os acordos firmados
na Conferência das Partes (COP 26), ocorrida em Glasgow em novembro de 2021, as
emissões globais de carbono aumentariam 14% até 2030, quando precisaroiam diminuir
45% para limitar a elevação de temperatura a 1,5 oC até o final do século.
É cedo para saber quais alternativas
serão realmente adotadas pelos países europeus que ainda dependem do suprimento
russo de petróleo (48%) e gás (70%). Um estudo publicado no mês passado pela
Universidade de Manchester (Reino Unido) conclui que, se os países
desenvolvidos encerrassem totalmente a produção de petróleo e gás natural até
2034, o planeta teria 50% de chance de limitar o aquecimento global a 1,5 oC
até 2100.
Os economistas da Purdue
University (EUA), Maskym Chepeliev, Thomas Hertel e Dominique van der Mensbrugghe,
publicaram em 9 de março o estudo Cutting Russia’s fossil fuel exports:
Short-term pain for long-term gain (“Cortar a exportação de combustíveis
fósseis da Rússia: um sacrifício a curto prazo para um ganho a longo prazo”, em
tradução livre).
Os autores defendem a
ideia de que o embargo ao petróleo e ao gás russos teriam um custo “modesto”
para a União Europeia, com consequências benéficas para o clima, já que “traria
importantes vantagens ambientais conexas, graças à redução das emissões de CO2
e de poluentes atmosféricos”.
Ainda não é possível afirmar que os efeitos da guerra na Ucrânia sobre os preços dos
combustíveis fósseis vão acelerar a transição energética na Europa. Enquanto isso, a
Agência Internacional de Energia anuncia que no setor mundial de energia as
emissões de GES cresceram 6% em 2021, em relação ao ano anterior.
https://www.ledevoir.com/environnement/691518/la-guerre-en-ukraine-ennemie-du-climat
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