domingo, 26 de julho de 2020

Energias renováveis não avançam com ‘great reset’, diz especialista

Para a analista americana Gail Tverberg, desenvolvimento de energia verde no pós-pandemia torna-se impeditivo no contexto de petróleo barato


“Uma redefinição da economia não é como a de um computador, que você reseta e a maioria dos problemas são corrigidos”, argumenta Tverberg em artigo recente, intitulado Wy a Great Reset Based on Green Energy Isn’t Possible, publicado no último dia 20 no site energycentral.com.

especialista em negócios na área de energia faz uma análise detalhada da questão energética no âmbito do plano “grande reinicialização” da economia global, proposto pelo Fórum Econômico Mundial.

Em sua análise, que sintetizamos a seguir, a autora parte do que ela considera uma falsa premissa –a analogia entre “resetar um computador” e “resetar a economia global”–, para demonstrar que o grande reinício ancorado na transição energética para fontes renováveis não teria como prosperar.

Mesmo que a economia possa assemelhar-se ao computador, no sentido de que é algo criado e controlado por humanos, sua estrutura física é completamente diferente. Um computador funciona a base de energia elétrica, que pode ser interrompida e religada ao bel prazer do usuário; um recurso frequentemente utilizado para reinicializar o equipamento e, assim, corrigir disfunções operacionais.

Já a economia é uma “estrutura dissipativa”, ou seja, só é capaz de crescer à custa de energia, como o combustível consumido no transporte de carga ou a eletricidade que move as máquinas. Trata-se de um sistema auto-organizado, na medida em que novos negócios são realizados com base nos recursos disponíveis para se produzir um determinado bem e na sua demanda no contexto de um aparente mercado.

Existem muitas outras estruturas dissipativas, como estrelas e fenômenos terrestres como tornados e furacões ou, ainda, todo tipo de ecossistema. Assim como as plantas precisam da energia do sol, os humanos precisam de alimentos (energia química) para viver. Todas essas estruturas se desenvolvem por um certo tempo e depois entram em colapso. Mas se sua fonte de energia é suprimida, elas falham rapidamente.

O crescimento econômico segue um padrão definido, e não pode evoluir fora de certos limites, que, por sua vez definem diferentes ciclos pelos quais a economia é submetida. Exemplos desses limites são: áreas aráveis para uma população crescente, agentes patogênicos incontroláveis e insumos energéticos muito caros para serem produzidos. Se ignoramos esses ciclos, corremos o risco de vincular um determinado modelo de crescimento econômico a uma projeção do consumo energético incompatível com a realidade.

Na atual conjuntura econômica, que se conecta com a crise financeira eclodida em 2008, o petróleo e o carvão têm o mesmo problema: os preços mantêm um viés de queda, tornando sua exploração economicamente inviável. Por essa razão, investimentos em novos poços de petróleo caíram e minas de carvão não rentáveis vem sendo desativadas em todo o mundo.

Os preços do petróleo e do carvão, depois de atingirem um pico em 2008, sofreram uma queda vertiginosa e, dez anos depois, oscilam globalmente em torno de 50% daqueles valores.

Evolução da produção mundial de petróleo (óleo cru, incluindo consensado) baseada em dados da Statistical Review of World Energy 2020, da British Petroleum. Rússia+ representa um grupo de Estados independentes pós-União Soviética. Adaptado de Gail Tverberg OurFiniteWorld.com

Como é mostrado na figura acima, a produção de petróleo entre os países da OPEP caiu a uma taxa de 2 milhões de barris por dia, entre 2018 e 2019, totalizando uma redução de cerca de 200 milhões de barris. Uma vez que a produção dos EUA, Canadá e Rússia foi pequena, a retração global no período alcançou 582 mil barris/dia.

Atualmente, o preço do petróleo continua baixo porque as restrições de mobilidade impostas pela pandemia reduziram a demanda, forçando ainda mais a queda do valor do barril em relação ao nível anterior à crise sanitária. As amplitudes de variação desses preços ao longo da última década explicam o padrão de consumo no período.

Um novo pico registrado em 2011, por exemplo, coincide com a facilidade de crédito ofertado pelos bancos, o que impulsionou o consumo de bens produzidos com energia fóssil, como automóveis e painéis fotovoltaicos. Já no biênio 2015-2016, os preços do petróleo e do carvão estavam baixos, período em que a economia chinesa teve um forte crescimento, fazendo com que os preços dos combustíveis fósseis subissem de novo em 2017 e 2018, voltando a cair em 2019 e mais ainda em 2020, pela paralisação econômica imposta pelas medidas de combate à pandemia.

Por outro lado, a produção mundial de petróleo se manteve praticamente estável entre 2004 e 2014, crescendo pouco até 2018, mesmo com os países membros da OPEP dispondo de elevadas reservas exploráveis. As projeções para o mercado de energia fóssil negligenciam com frequência o fato de que os baixos preços poderiam retrair a exploração desses combustíveis.

Os autores dessas predições partem da premissa de que as energias renováveis seriam uma extensão de um sistema alimentado por combustíveis fósseis. O que a maioria deles parece não entender é que os preços das matérias primas (as commodities) são fixados com base em leis de mercado, que estabelecem um equilíbrio entre oferta e demanda, esta última mantendo-se próxima da “abordabilidade”. Se a disparidade entre salários e riqueza é grande, os preços das commodities tendem a se manter muito baixos.

Em um mundo globalizado, milhões de trabalhadores mal remunerados, muitos ganhando um punhado de dólares por dia, estão impedidos de participar de uma grande fatia do mercado global de bens e serviços. A robotização da produção produz um resultado similar, na medida em que substitui uma massa de trabalhadores que poderiam representar um potencial mercado consumidor.

É neste contexto que se deve mirar o futuro das fontes renováveis de energia preconizado pelo “grande reset”. Ao construir modelos energéticos, os especialistas avaliam a relação entre energia investida e energia produzida pelo vento e pelo sol, com base na hipótese de que essas fontes limpas, porém intermitentes, sejam utilizadas como parte integrante de um sistema alimentado por combustíveis fósseis. O equilíbrio dessa relação seria obtido à custa de altos subsídios.

Esses modelos sugerem que seja vantajoso produzir energia de origem eólica e solar, mas parecem negligenciar que isto só seria possível dentro de um sistema baseado em energia fóssil, cujo equilíbrio só pode ser alcançado a um custo muito baixo. E voltamos à questão da baixa demanda, que afeta toda sorte de produto, empurrando os preços para baixo.

Consequentemente, boa parte dos recursos com os quais os modeladores contam e que as empresas precisam para investir muito provavelmente não estejam disponíveis. Um ciclo vicioso em que uma situação de baixos preços das commodities levam ao empobrecimento dos trabalhadores, que, terminam por se insurgir, como temos visto nos últimos anos em vários países. Esses movimentos populares entram no fator “revoluções e guerras” da Carta de Dalio, uma curva que mostra os diferentes ciclos econômico mundiais, que explicam propostas de “nova ordem econômica”.

Com o baixo valor das commodities generalizado, a capacidade de produção dos sistemas de estocagem de energia eólica e solar, como as baterias elétricas, é restringida, tornando-se um problema crescente. Uma vez limitada a produção de baterias, seu impacto na extração de petróleo e carvão é inevitável. A estabilidade da oferta de mão de obra nos países periféricos que dispõem as grandes reservas de matéria prima para baterias, como a Bolívia com o lítio, torna-se um risco num contexto de baixos preços desses produtos, porque fica sujeita a sublevações locais.

Sendo ampla a variedade de formas de subsídio que cada país concede à produção de energias renováveis, fica difícil estimar exatamente o custo da energia limpa não convencional. A propalada “paridade rede” da eletricidade eólica e solar, quando o custo do kWh renovável equivale ao kWh gerado convencionalmente, mascara o custo da estocagem necessária para mitigar a intermitência dessas fontes.

A China relata que dispõe de 42 bilhões de dólares (mais de 200 bilhões de reais) para subsidiar a produção de energia limpa. Um montante que tende a crescer a cada ano. Os países estão se tornando mais pobres e ficando com menor capacidade de arrecadar impostos, o que compromete sua capacidade de subvencionar sistemas elétricos custosos.

Participação das fontes hídrica, eólica e solar no suprimento global de energia, baseada em dados da Statistical Review of World Energy 2020, da British Petroleum. Adaptado de Gail Tverberg OurFiniteWorld.com

As fontes renováveis –hídrica, eólica e solar– respondem atualmente por pouco mais de 10% do suprimento mundial de energia, assim distribuídas (Figura): 6,4% hídrica, 2,2% eólica e 1,1% solar, somando 9,7% da matriz energética global. A eletricidade limpa oriunda dessas três fontes não é adequada para a produção de alimentos. Derivados de petróleo é que são usados para arar a terra, produzir herbicidas e pesticidas e para transportar a produção agropecuária até os centros de distribuição e consumo.

É preciso destacar a importância do suprimento energético que permita ao homem o controle sobre outras espécies e patógenos. Se no século XIX a pasteurização foi crucial para garantir alimentos livres de micro-organismos nocivos, nos últimos anos o controle de agentes patógenos tem sido alvo de um esforço científico que envolve o desenvolvimento de antibióticos, antivirais e vacinas.

No enfrentamento da epidemia de Covid-19 os sistemas de saúde mundo afora funcionam a base de um moderno mix de energia, que inclui geradores de apoio, movidos a gás ou a diesel, para garantir o fornecimento elétrico de forma contínua. Muitas drogas usadas no tratamento da doença são sintetizadas usando componentes da indústria petroquímica, assim como muitos EPIs (equipamentos de proteção individual). Sem falar do transporte desses produtos, que é feito por veículos que consomem combustíveis fósseis.

Tudo indica que o mundo caminha para um Grande Reinício. No entanto, é pequena a possibilidade de que a energia verde possa desempenhar um papel de relevância. Isto se deve à formulação equivocada de modelos preditivos para o desenvolvimento de fontes renováveis, que dificultam a compreensão por parte de líderes mundiais.

Uma vez que o suprimento global de petróleo e carvão parece diminuir no curto prazo, é remota a possibilidade de um aumento tão alto da produção de combustíveis fósseis, tal como prevê o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática). De fato, equipamentos a base de energia renovável devem continuar operando durante algum tempo. Mas à medida em que a economia mundial continue a se retrair, torna-se mais difícil manter a fabricação de produtos dotados de tecnologia limpa e a manutenção daqueles já existentes.

Com os preços da eletricidade gerada a partir de energia fóssil permanecendo baixos, mais subsídios serão necessários para garantir a produção de energia eólica e solar.

É de se esperar no pós-pandemia um recrudescimento dos distúrbios sociais, que serão causados em boa parte pelo baixo preço das matérias primas e pelos baixos salários. A globalização tende a desaparecer. Manter em condições operacionais as linhas de transmissão elétrica será um problema crescente, assim como muitas outras tarefas ligadas à disponibilidade do suprimento energético.

2 comentários:

  1. Entretanto, preço do petróleo e combustível fóssil são muito voláteis. Não tem como trabalhar um preço baixo no longo prazo. A demanda por energia renovável vai aumentar muito ainda e não será apenas o custo de exploração qye irá prevalecer. A questão da mudança climática vai ser considerada. E a questão da demanda alta de energia no geral também.

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  2. É preciso uma conscientização geral, com forte mobilização da população no mundo todo, para que as renováveis sejam impulsionadas, já que não há saída para enfrentar a crise climática que não passe pela transição energética para fontes limpas. No entanto, é evidente que o pós-pandemia vai experimentar um período em que a demanda global por energia será reduzida e, neste caso, o mercado de energia fóssil vai pesar bastante, como adverte a analista americana.

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