Evidências científicas indicam que ‘gripe russa’ do século XIX teve características semelhantes às da atual epidemia de Covid-19
Menos conhecida que a
devastadora gripe espanhola, epidemia que matou entre 50 e 100 milhões de
pessoas, de 1918 a 1920, a chamada gripe russa (1889-1894) não é menos
interessante e, talvez, seja a mais pertinente a ser evocada como referencial no
contexto da Covid-19.
Estudos com diferentes enfoques (genéticos, epidemiológicos e clínicos) apontam várias semelhanças entre a histórica pandemia -que eclode com o advento das ferrovias na Europa e na Ásia- e a atual pandemia viral respiratória.
A hipótese comum
aventada por estes estudos é a de que o vírus OC43, causador da primeira
pandemia de gripe moderna -conhecida como gripe russa, “de São Petersburgo”
ou gripe asiática- teria dado origem a um dos quatro coronavírus humanos
benignos existentes.
A doença teria
surgido em algum lugar do Império Russo em 1889, provavelmente em São
Petersburgo, e rapidamente se espalhou pelo planeta em sucessivas ondas. Em
apenas seis semanas a pandemia invade a Europa ocidental e atinge seu apogeu
nos Estados Unidos em janeiro de 1890, ao mesmo tempo em que chega à Austrália
e Nova Zelândia. Nesta primeira onda, pelo menos um milhão de pessoas morreram
em todo o mundo, cuja população era de 1,5 bilhão.
A disseminação da
doença segue rigorosamente o trajeto dos 200 mil quilômetros de vias férreas
recém construídas mundo afora e avança na velocidade dos trens, marcando a
epidemia como tipicamente urbana: cidades portuárias e capitais são as
primeiras a serem afetadas. Rapidamente, a hipótese de transmissão miasmática
(pelo vento e pelos rios) é abandonada pela comunidade científica.
No plano clínico, a
gripe russa foi caracterizada inicialmente como uma infecção respiratória
clássica, mas logo foram observados sintomas inusitados e alguns similares aos
da Covid-19, tais como maior grau de contágio do que a gripe (particularmente
entre pessoas da mesma família), inchaço dos dedos (vasculite), maior
frequência de distúrbios renais e digestivos, alta mortalidade entre pessoas
idosas e casos de reinfecção (15% dos pacientes) por até duas vezes.
Os tratamentos
adotados eram feitos à base de remédios fantasiosos e sem nenhuma prova de
eficácia, como o óleo de rícino, quinino, ostras, conhaque, corrente elétrica e
até estricnina, esta última causando morte súbita em muitos pacientes em
1891.
Considerada a
“primeira pandemia midiática”, a divulgação da gripe russa nos meios impressos
da época suscitou sentimentos não muito diferentes do que vimos ao longo de
2020. Expedientes como o sensacionalismo (“pessoas caindo mortas nas ruas”), a
tentativa de racionalização (“os mais cultos são mais susceptíveis a se
contagiar”) ou acusações contra a alta tecnologia da época (“as cidades são
mais afetadas por causa da luz elétrica”) eram comumente usados para
noticiar a doença.
Às vésperas de
completar um ano, desde o primeiro caso de infecção por SARS-CoV-2 reportado na
China (em 17 de novembro de 2019), diferentes canais de mídia divulgaram
resultados de estudos filogenéticos, epidemiológicos e clínicos da gripe russa,
que sugerem uma origem viral comum entre ela e a Covid-19. O
acrônimo “Covid-18” no título do artigo refere-se ao hipotético nome
(sigla para Coronavirus Disease) que teria a gripe russa; 18
significa sua ordem cronológica, embora a sigla correta fosse Covid-89, em
razão do ano de aparição da doença (1889).
Os estudos relatam, por exemplo,
que em 2005 pesquisadores belgas sequenciaram de forma inédita o genoma
completo do OC43, comparando-o ao de um coronavírus do boi (o BCoV), e concluem
que a data mais recente de um ancestral comum entre esses vírus remonta a 1890.
O resultado foi
confirmado em 2020 por pesquisadores dinamarqueses que, em agosto, dataram o OC43 também por volta de 1890, a partir de uma mutação do BCoV.
Trata-se de um estudo mais robusto porque utiliza diferentes versões do genoma
do OC43, coletadas durante 15 anos.
Assim, do ponto de
vista filogenético -área da biologia que trata das relações evolutivas entre os
seres vivos- é razoável supor que o OC43 seja o coronavírus à origem da
pandemia de gripe russa. Elementos epidemiológicos e clínicos reforçam esta
hipótese.
Entre 1870 e 1890, o
rebanho bovino mundial foi dizimado por uma zoonose (uma pleuropneumonia
contagiosa), provavelmente relacionada com a expansão vertiginosa do comércio
de gado vivo, viabilizado pelas ferrovias. Para controlar a doença,
centenas de milhares de cabeças de gado foram abatidas, expondo o pessoal
encarregado do abate aos vírus respiratórios dos animais, entre eles o BCoV,
por um longo período.
Consequentemente,
supõe-se que uma mutação deste vírus tenha dado origem ao OC43 e este tenha
sido transmitido àqueles profissionais, ou que o OC43 tenha se desenvolvido no
organismo humano após o contágio pelo BCoV. Esta segunda hipótese nos remete à
epidemia de SARS (Síndrome Respiratória Aguda Severa) em 2003, associada ao
consumo humano de civetas -um felino semelhante à raposa- ou ainda, à epidemia
de AIDS surgida nos anos 1950, causada pela ingestão da carne de chipanzés
selvagens.
Em termos clínicos, o
que se conhece sobre a patogênese de OC43, particularmente os sintomas
neurológicos da doença, permite compará-lo ao novo coronavírus. No ano 2000,
cientistas canadenses constataram a semelhança desses sintomas com os de um
outro coronavírus, o 229E, presente no catarro de um resfriado comum.
Eles analisaram o RNA
do OC43 e do 229E de amostras coletadas do cérebro de cadáveres de pacientes
com esclerose múltipla (EM) e compararam com as de portadores de “outros
distúrbios neurológicos” e “sem sintomas neurológicos”. A frequência de traços
de OC43 foi significativamente maior nas amostras de portadores de EM do que
nas de outros pacientes (39% contra 14%).
Os autores afirmam,
ainda, que os coronavírus humanos podem infectar outras células do tecido
nervoso, sugerindo que esses vírus podem ser “neurotróficos, neuroinvasivos e
neurovirulentos”, o que coincide com a capacidade de desencadear surtos de
esclerose múltipla que as infecções respiratórias virais possuem.
Outros elementos
clínicos da gripe russa permitem compará-los aos sintomas de Covid-19 relatados
durante o pico pandêmico ocorrido em março, como a vasculite (inflamação das
paredes dos vasos sanguíneos) nas pontas dos dedos e outras formas graves em
pessoas idosas.
Devido à baixa
estabilidade do RNA, mesmo em cadáveres congelados no pergelissolo russo ou da
Groelândia há 130 anos, provavelmente seja impossível comprovar por A mais
B que o coronavírus OC43 tenha sido o responsável pela pandemia de gripe russa.
No entanto, ainda temos muito que aprender sobre a pandemia de Covid-19 em seus múltiplos aspectos. Do ponto de vista biológico, o SARS-CoV-2 se tornará um vírus respiratório comum e benigno daqui há alguns anos.
Epidemiologicamente, como
prever o surgimento de novas doenças de origem zoonótica? Enquanto sociedade,
como reagiremos -população e mídia- face a futuras pandemias? Negacionistas e
antivacinas continuarão tendo algum protagonismo?
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