Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas reconhece como direito fundamental o acesso a um meio ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável
A emenda proposta pelo governo brasileiro ao Conselho da ONU
visando flexibilizar a proteção e a sustentabilidade ambiental foi rechaçada na
sessão que aprovou, no último dia 8, a declaração de um novo direito humano, que
vai de encontro à urgência climática planetária.
Sob tutela militar oficiosa, altamente influenciada pelo negacionismo climático e a pretexto de uma “soberania nacional”, a missão brasileira tentou incluir na resolução da ONU uma cláusula que daria autonomia “a cada Estado sobre seus recursos naturais”.
A frustrada tentativa da representação brasileira na histórica
sessão daquele Conselho foi mais uma derrapagem da nossa diplomacia, que não para de
passar vergonha mundo afora, não só na questão climática, mas no combate à
pandemia de Covid-19, fruto de ações comandadas por negacionistas da ciência.
A Alta-Comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle
Bachelet, considerou audaciosa a resolução proposta pela Costa Rica, Maldivas,
Marrocos, Eslovênia e Suíça e aprovada por 43 países, incluindo o Brasil, com
abstenção da Rússia, China, Índia e Japão. Ela “reconhece claramente a
degradação do meio ambiente e a mudança climática como crises interconectadas
em termos de direitos do homem”, diz Bachelet.
No início da sessão que aprovou o texto, Bachelet enfatizou que
a tripla ameaça global mudança climática, poluição e perda de natureza é o
maior desafio da humanidade atualmente. A nova resolução reconhece os danos
infligidos a milhões de pessoas no mundo todo, especialmente as mais
vulneráveis, causados pelo aquecimento global e a destruição do meio ambiente.
O apoio para que a ONU reconhecesse e declarasse este direito
como fundamental cresceu durante a pandemia de Covid-19. Quase 70 países deram
aval à proposta apresentada ao Conselho de Direitos Humanos, que foi endossada
por 15 agências da ONU, com o suporte de mais de 1.100 organizações da
sociedade civil.
“Um aumento das doenças zoonóticas, a emergência climática, a
poluição tóxica e uma perda dramática da biodiversidade puseram o futuro do
planeta no topo da agenda internacional”, disse um grupo de relatores da ONU em
uma declaração divulgada em 5 de junho deste ano, Dia Mundial do Meio Ambiente.
Esta resolução levou décadas para ser aprovada, considerando
que a primeira conferência da ONU sobre Meio Ambiente, realizada em Estocolmo,
remonta a 1972. “É realmente [um fato] histórico e significativo para todos,
porque sabemos que 90% das pessoas no mundo estão respirando ar poluído”,
afirmou David Boyd, relator especial da ONU sobre Direitos Humanos e Meio
Ambiente.
Ainda que não tenha caráter “legalmente vinculativo”, a
resolução recém-aprovada deve ser um catalizador para ações mais ambiciosas em
todas as questões ambientais que enfrentamos, explica Boyd. Ele cita o exemplo
da resolução da ONU que reconheceu o direito à água em 2010 e levou
diversos governos a incluírem em suas leis e constituições o direito a este bem
comum.
E água não é apenas alimento vital para seres humanos, fauna
e flora. No Brasil e tantos outros países, a maior parte da eletricidade
produzida provém da energia hidráulica, que, por sua vez, depende do ciclo das
águas.
Em plena crise energética, eclodida pelo esgotamento dos
reservatórios de nossas hidrelétricas por conta de uma seca prolongada, os responsáveis
pela atual política ambiental brasileira parecem não perceber que a destruição da
Amazônia impacta o clima local e contribui para a falta de chuvas em várias
partes do país.
Felizmente para o bem comum e do clima planetário, aqueles que
deveriam defender a preservação do maior bioma tropical do planeta foram ignorados em Bruxelas,
em sua pretenciosa tentativa de relativizar a resolução que confere à humanidade o direito a dispor de uma natureza saudável e duradoura.
O que a fracassada missão brasileira tentou emplacar na Comissão de Direitos Humanos da ONU foi certamente uma visão
míope das altas patentes militares que tutelam o governo federal, ancorada na retórica
falaciosa da “soberania sobre os recursos naturais”.
Submeter este novo direito fundamental à soberania de cada Estado, como queria o governo brasileiro, “é uma crença que desloca o [real] ataque
aos ‘recursos naturais’, por organizações criminosas, com forte apoio local e
federal, e atacam os povos da floresta, para um imaginário inimigo externo”,
escreve Ricardo Abramovay em sua coluna do UOL em 12.10.2021.
As eminências verde-oliva que de fato comandam o Brasil forjam
sua “política ambiental” sem consultar nenhum dos cientistas brasileiros que
participam do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). Ao contrário,
ouvem apenas negacionistas climáticos, com currículos acadêmicos de 5ª categoria,
“supostos especialistas, sem publicações em revistas internacionais de
qualidade”, segundo Abramovay.
Sem constrangimento, o general vice-presidente da República declara
que “neste século 21, a sustentabilidade é a maior ameaça à soberania”.
Temeroso da ação de “atores não estatais” em defesa da floresta Amazônica e dos
povos nativos, adverte para o risco de “sofrermos severas consequências” que
poderiam submeter o país a uma “intervenção”.
Um outro conceito defendido pelas altas patentes do primeiro
escalão de governo é o “vazio populacional da Amazônia”, pelo qual a baixa
densidade demográfica dos povos indígenas os tornaria presas fáceis aos
interesses estrangeiros na região.
Nessa ótica, a melhor maneira de ocupar o território seria pela
legalização de atividades mineradoras convencionais, extração de madeira e
expansão do agronegócio. Extrativismo elevado ao máximo grau, tudo com amplo
incentivo do governo federal, daí o temor de que as enormes áreas de proteção
indígena obtenham demarcação legal definitiva.
Esta narrativa oficial é “alucinada e destrutiva”, diz o articulista
Abramovay. Precisará ser contraposta, quando “o fanatismo fundamentalista for
afastado do poder”, a uma visão mais lúcida sobre o patrimônio natural
que o Brasil dispõe para “auxiliar a humanidade a enfrentar seu maior desafio
global”.
“As riquezas da floresta podem ser a base da prosperidade,
desde que sejam respeitados os direitos humanos, a ciência e a cultura dos
povos da floresta”, conclui Abramovay em seu artigo. E o que a ciência diz sobre o maior bioma
tropical da Terra?
O mais recente e abrangente estudo científico sobre a Amazônia
foi entregue à ONU em setembro deste ano: o Relatório de Referência “A Amazônia
que nós queremos”. Foi elaborado por duas centenas de especialistas, que
alertam sobre os riscos do ritmo de desmatamento acelerado e propõe uma série
de ações para freá-lo.
O relatório é apresentado em quatro partes: 1) A Amazônia como
Entidade Regional do Sistema Terra; 2) Presença Humana e Diversidade
Sociocultural na Amazônia; 3) Transformações Sócio-ecológicas: Mudanças na
Amazônia; 4) O Espaço da Solução: Encontrar Caminhos Sustentáveis para a
Amazônia.
A primeira parte do texto contém a justificativa para que a
Amazônia seja considerada um patrimônio não apenas dos países por onde se
estende a floresta, mas de todo o planeta, já que é parte essencial da biosfera
e, portanto, todos os seres vivos dependem dela.
Estima-se que em apenas 22 anos (entre 1995 e 2017), a área de
floresta devastada na Amazônia superou os 360 mil km2, uma superfície pouco
maior que a da Alemanha. A região teria sofrido um aumento de temperatura nos
últimos 150 anos de 1,2 oC, pouco maior que a média do planeta (+ 1,1 oC).
O estudo destaca a necessidade de se contrapor à narrativa
dominante e falaciosa de que “a floresta em pé não produz desenvolvimento
socioeconômico”. É preciso evidenciar “as visões alternativas e práticas
históricas dos indígenas e comunidades tradicionais, bem como seus meios de
subsistência, que dependem de diversos recursos naturais”.
Os pesquisadores defendem que os esforços de conservação devam ser prioritariamente destinados a evitar novos danos, o que “requer
monitoramento quase em tempo real da perda e da degradação florestal e fiscalização
eficaz no local e regionalmente, com a participação de todos os países
amazônicos”.
Ressaltam a importância dos recursos do governo e a cooperação
internacional em programas inovadores que permitam “ampliar o conhecimento da
biodiversidade e seu uso potencial, envolvendo as comunidades locais na
pesquisa, no planejamento e na busca de alternativas de meios de subsistência”.
Outras medidas apontadas no relatório incluem “uma abordagem
intercultural nas políticas educacionais e linguísticas (...) [que permitam]
promover a interação com os sistemas educacionais existentes, incluindo a
criação de uma Universidade Pan-Amazônica”; a adoção de estratégias baseadas na
“cultura da biodiversidade para recuperar áreas degradadas e fomentar sistemas
agroecológicos sustentáveis”; implementar um novo planejamento urbano e
cultural que promova o intercâmbio entre áreas rurais e urbanas e “o diálogo entre
o saber indígena e o saber científico”.
Os cientistas avaliam, ainda, que é possível interromper o
desmatamento em menos de uma década, pela restauração e reabilitação de áreas
degradadas e terras agrícolas abandonadas, e ao mesmo tempo “promover
oportunidades econômicas diretas e indiretas, bem como benefícios
socioambientais à população local”.
Os danos causados pela degradação ambiental devem ser
analisados em seus vários aspectos e “as opções de restauração dependem das
causas da destruição, da extensão do seu impacto e do contexto socioeconômico;
a recuperação de ecossistemas terrestres degradados por mineração, por exemplo, pode ser
acelerada pela reflorestação da área”.
O relatório científico que evidencia a Amazônia como um bioma
vital para a humanidade e a Resolução do Conselho da ONU que garante a todos o
direito de dispor de um meio ambiente saudável são imprescindíveis para a
criação de um direito internacional capaz de defender os bens comuns de interesses
privados.
É preciso urgentemente implantar uma legislação que extrapole
as fronteiras dos países amazônicos e possa efetivamente coibir o desmatamento,
via boicote de comércio exterior e outros mecanismos econômicos, como a taxação
de produtos de exportação extraídos da floresta.
Nada mais atual do que o texto-base “O Cuidado com os Bens
Comuns”, do evento Terra Futura realizado em 2011, em Florença (Itália): “Não
se trata apenas de recursos naturais que permitem a vida no planeta, mas também
de bens imateriais que constituem a essência da felicidade individual e
coletiva das comunidades, como equidade social, trabalho, saúde, pluralismo
cultural, segurança, informação, conhecimento, direitos civis e sociais e a
própria democracia”.
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