“Silêncio
por Sangue - A verdadeira história da Papel Prensa”, título do livro de Daniel
Cecchini e Jorge Mancinelli, que desvenda o monopólio da produção e
distribuição de papel-jornal na
Argentina
http://semanadelcomunicador2010.blogspot.com.br/2010/10/jorge-mancinelli-y-nahum-mirad.html
Em
artigo sobre o Clarín, publicado ontem no site de Carta Maior, o jornalista, tradutor e escritor Eric Nepomuceno traz à
luz passagens muito pouco católicas da trajetória do periódico portenho, forjada nos
porões da sanguinária ditadura argentina.
Veja
o que disse em 2010, diante do tribunal, Lidia Papaleo – viúva do então dono da
Papel Prensa (única fornecedora e distribuidora de papel-jornal no país em 1976):
“nenhum desses rostos [de meus torturadores], nenhum
desses olhares, me persegue e amedronta mais em meus pesadelos que o olhar de
Héctor Magnetto me dizendo que ou assinava a venda da empresa, ou eu e minha
filha seríamos mortas”.
Magnetto era e continua sendo o principal executivo do grupo Clarín, escreve Nepomuceno. Leia abaixo o artigo completo.
Magnetto era e continua sendo o principal executivo do grupo Clarín, escreve Nepomuceno. Leia abaixo o artigo completo.
O que há por trás de um jornal chamado Clarín
(II)
Por Eric
Nepomuceno
Na América
Latina, não é nada incomum – aliás, muito pelo contrário – que, durante regimes
de exceção, que é como os delicados de vocabulário e os débeis de caráter
chamam as ditaduras, grandes conglomerados de comunicações tenham surgido, se
consolidado e se transformado em impérios.
É curioso
reparar como a forma em que esses grupos e organizações foram criados
corresponde a uma clara divisão do mercado, cuidando sempre de reservar espaço
para que atuem, na prática, como monopólios. Assim, passam a impor suas
vontades e suas visões do mundo, que no fundo são o eco exato do que dita a voz
do poder econômico. Dizem não depender do governo, o que, a propósito, é
mentira. Nada dizem de sua dependência vital, direta, do poder econômico, sua
verdadeira verdade.
Observar
essa espécie de fenômeno comum às nossas comarcas mostra a clara existência de
um modelo, implantado aqui e acolá com leves variações, mas sempre ao redor do
mesmo mecanismo.
Por trás
da furiosa oposição que o grupo Clarín faz ao governo de Cristina Fernández de
Kirchner existe uma história linear, típica desse mecanismo.
O grupo
apoiou sem pejos uma ditadura espúria, com todos os ingredientes comuns às
nossas comarcas (favorecimento do poder econômico à custa do atropelo dos
direitos civis mais elementares, sedução e cumplicidade de parcelas das classes
médias, omissão diante da atuação brutal dos agentes encarregados de impor o
terrorismo de Estado, através de prisões ilegais, torturas, assassinatos e
desaparecimentos de opositores). Nesse período, se fortaleceu enormemente.
Assim, o
retorno da democracia encontrou o grupo consolidado, e oscilando levemente ao
sabor dos novos ares. Soube ser crítico na medida exata – medida limite –
durante todos os governos seguintes, observando sempre que não fossem tocados
de forma direta seus interesses (ou seja, os do poder econômico preponderante,
o interno e o externo) e que as manchas do passado não fossem trazidas à luz do
sol.
Até que
tropeçou com um governo de outra tintura, que resolveu correr o risco de enfrentar
os tais interesses e atiçar o passado. A crescente polarização que a Argentina
vive nos últimos anos não faz mais que fortalecer esse embate.
O espaço
para a crítica clara e frontal – e o governo de Cristina Kirchner merece e deve
ser criticado em copiosos aspectos – perdeu lugar para a confrontação aberta,
sem regras e princípios. A manipulação e a distorção de fatos e informações
passaram a ser o pão de cada dia.
Acontece
que, muitas vezes, não basta com ocultar ou sabotar informação. A vida tem seus
próprios caminhos, e esses caminhos frequentemente escapam do controle dos que
se acreditam capazes de controlar a própria realidade.
Agora
mesmo tornou a saltar ao sol uma das fontes de tamanha fúria, um dos grandes
nós desta questão: o passado do Clarín. Trata-se de uma série de revelações que
o jornal já não consegue mais tapar.
Dia
desses, e uma vez mais, Lidia Papaleo, viúva de David Graiver, falou. Agora,
diante de um tribunal. E tornou a repetir, com mais detalhes que antes, o que
viveu depois da misteriosa morte do marido no México, em agosto de 1976 (a
ditadura de Videla tinha escassos cinco meses de vida), num desastre de avião
jamais explicado.
Agora, e
de novo, ela contou, com todas as letras, como foi coagida a vender ao Clarín
as ações com que Graiver, um financistas astuto e brilhante, controlava a Papel
Prensa, única fornecedora e distribuidora de papel-jornal no país.
Contou
como foi presa depois – depois – de ter fechado o negócio. Os compradores foram
o desaparecido jornal ‘La Razón’, o ‘La Nación’, e, levando a maior parte, o
‘Clarín’.
A certa
altura de seu depoimento, Lidia Papaleo contou das sevícias que padeceu. Muitas
vezes, depois de vexada, era largada estendida no chão da cela ou da sala de
tormento. ‘E então eles vinham e cuspiam e ejaculavam em cima de mim’, contou
ela.
Antes que
o juiz interrompesse a sessão para que o público abandonasse o recinto e ela
pudesse continuar com seu rosário de horrores, Lidia disse:
– Até hoje
lembro os rostos de meus torturadores. Porém, nenhum desses rostos, nenhum
desses olhares, me persegue e amedronta mais em meus pesadelos que o olhar de
Héctor Magnetto me dizendo que ou assinava a venda de Papel Prensa, ou eu e
minha filha seríamos mortas.
Pois bem:
Héctor Magnetto era e continua sendo o principal executivo do grupo Clarín. Foi
quem, naquele distante 1976, e antes do sequestro e das torturas de Lidia
Papaleo, se reuniu com ela, e foi diante dele que ela capitulou.
Meses
depois, assim que a transação foi sacramentada, Lidia acabou sendo levada para
os calabouços do horror. Por quê não a prenderam antes? Por uma questão legal:
havia uma lei que passava diretamente às mãos do Estado as propriedades dos
subversivos presos. E a ditadura não queria se apoderar da fábrica Papel Prensa:
queria compensar os bons serviços prestados ao regime pelos três jornais
contemplados.
Por que a
prenderam? Por achar que havia mais patrimônio a ser espoliado. E porque era
mulher, tinha sido casada com um financista acusado de cuidar do dinheiro dos Montoneros
e, enfim, porque prender, violar e vexar era parte da rotina do sistema que
compensou o silêncio cúmplice e interessado dos Magnettos da vida.
Assim
começou a fortaleza e o império do grupo Clarín. Depois vieram as concessões de
rádio e televisão em cascata, depois veio todo o resto. Essa a história que há por trás da história. Os mesmos métodos aplicados contra
Lidia Papaleo continuam sendo aplicados no dia-a-dia do grupo.
Nisso, pelo menos, há que se reconhecer uma consistente coerência: os que controlam o grupo Clarín jamais deixaram de ser o que foram. Continuam agindo como agiram, e cuidando, sempre, de jamais se aproximar da perigosa linha que marca o início de um território que desconhecem, chamado dignidade.
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